Da figura em geral e do corpo em particular – a invenção figurativa no cinema – Carta a Tag Gallagher, por Nicole Brenez (17/07/1998)

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Da figura em geral e do corpo em particular – a invenção figurativa no cinema[1]

Introdução

A Tag Gallagher,

Chesnut Hill, Mass.

 

Paris, 17 de julho de 1998

 

Caro Tag,

você gostaria de compreender melhor no que consiste a análise figurativa do cinema (…)Primeiramente, a análise figurativa não é um método doutrinário e não tem vocação para se tornar isso: ela visa apenas uma coisa, a consideração de dimensões e de problemas paradoxalmente negligenciados dentro dos filmes e, para esse fim, se baseia na mobilização (mise en oeuvre) de alguns princípios práticos que, de modo algum, formam preceitos. Trata-se de uma abertura analítica a partir dos próprios filmes e não de uma regulamentação terminológica. (A rigor, a única fórmula irrevogável seria a advertência de Gilles Deleuze: “Experimente, não interprete nunca”[2]). Eis aqui, a título de introdução, quatro desses princípios.

 

1) Considerar, ao menos provisoriamente, que o filme tem prioridade sobre o seu contexto. (Análise figural)

            Não se trata senão de um parênteses na circulação infinita que toda imagem mantém com aquilo do que ela é imagem – mas sem ele, não saberemos jamais aquilo a partir do qual a imagem nos entretem. Em matéria de análise das representações, e a despeito de abordagens disciplinares e de opções ideológicas muito diversas, existe hoje uma potente doxa metodológica, uma adesão comum a certos procedimentos oriundos de uma história das ideias. Essa história toma seu impulso no século XVIII com o Discours préliminaire de d’Alembert em L’Encyclopédie, texto que consagrou, segundo o título de Blandine Barret-Kriegel, la défaite de l’érudtion [a derrota da erudição][3], e desta maneira a vitória da razão conceptual sobre a autoridade erudita, do método de vocação universal sobre a ênfase [prise en charge] no detalhe, do espírito de sistema sobre a investigação técnica. Os fundamentos práticos dessa constelação metodológica estão assentados sobre um princípio estabelecido no século XVII por Mabillon em De Re Diplomatica libri (1681): aquele da prova [probabtion], ou seja, o estabelecimento científico da fonte (o arquivo, o diploma, em seguida o fato) por meio de constatações físicas e formais. Sem retraçar sua complexa gênese, interessante também porque ela abandona e esquece dos recursos especulativos, eu te lembro das fórmulas metodológicas maiores comumente admitidas nas ciências humanas e mais particularmente na história da arte e das representações. O estabelecimento histórico dos fatos; a caracterização semiológica (a obra é traço, impressão, análogo [analogon]…); o recurso à mais ampla contextualidade (estudo dos determinantes econômicos, políticos, culturais, etc.); a pesquisa intertextual (inscrição modalizada da obra em uma história das formas); o estabelecimento das relações (referenciais mas também funcionais) da obra com o campo histórico de onde ela provém; a abertura à interdisciplinaridade: tais procedimentos contribuem para constituir a aparelhagem técnica da análise metódica. A historização dos parâmetros da representação, das categorias analíticas e dos descritores (histórias do olhar, do pensamento visual, da interpretação ou do próprio método); a incompletude declarada da análise de duplo olhar do devir da disciplina de que ela depende e do recurso sempre possível a uma disciplina diferente; o questionamento do papel do observador; a reflexão sobre o modo de escrita empregado (natureza da ekphrasis) [tais procedimentos] constituindo a aparelhagem reflexiva-crítica.

Esses princípios organizam a apreensão da obra como aquela de um monumento (Denkmal), para retomar o termo de Hans Tietze num livro exemplar[4]. Estabelecida, identificada, determinada por suas bordas históricas, espaciais e subjetivas, inscrita nas tendências do estilo e do gosto, considerada reciprocamente como fonte de outras histórias, incluindo aquela de sua recepção, a obra se torna, de certa forma, visitada, transparente, atravessada por aquilo que a autorizou e por aquilo que ela suscita, “desmultiplicada”(demultipliée – proporção em que a velocidade se encontra reduzida) ao mesmo tempo que ausente em procedimentos que a tomam como objeto. Indispensável e frequentemente fértil, esse trabalho de investigação, do qual deve-se dizer que hoje ocupa quase exclusivamente a cena hermenêutica, não parece, contudo, suficiente. Como pode a obra reencontrar sua espessura, sua fecundidade, sua fragilidade, sua densidade própria ou sua eventual opacidade, em uma palavra, suas virtudes problemáticas? Como levar em consideração aquilo que, nela, rejeita as lógicas do pertencimento, da identidade, da confirmação? Para o analista, isso supõe admitir uma questão difícil, uma questão que não é óbvia (ne va pas de soi) precisamente porque ela visa o seu outro: em que a obra se faz tema? A conclusão das Questions de méthode en histoire de l’art de Otto Pächt colocava esse problema: “Graças às artes plásticas, foi possível dar uma expressão concreta às coisas, aos conteúdos, às experiências que não teriam conseguido se fazer compreendidas em outros domínios da cultura, ou teriam que ter assumido uma outra forma para poder serem apreendidas. A arte deve então ser considerada e apreciada como uma afirmação sui generis (…) e deve-se conceder à esfera das artes plásticas a mais completa autonomia”[5]. Do mesmo modo, sem se esquecer nem negligenciar os discursos deterministas, é aqui que a análise estética, naquilo que a singulariza, começa: ela não reconduz a obra aos seus determinantes nem reduz o trabalho artístico à ideia de eficácia histórica, que atormenta (hante) secretamente os procedimentos de investigação que podemos chamar de “objetivantes”. Trata-se, ao contrário, de considerar as imagens como ato crítico e, assim, de procurar desdobrar suas potências próprias. Será isso subtraí-las de um contexto, de uma história, do mundo tal como acreditamos ser antes delas? De maneira alguma. No centro desse tipo de questionamento opera a afirmação de Adorno: “As formas de arte registram a história da humanidade com mais exatidão que os documentos”[6]. É justamente por isso que importa analisá-las de fato, em si próprias e sobretudo, do ponto de vista das questões que elas colocam, do ponto de vista das questões que elas criam.

Sobre a pintura, Hubert Damisch traçou com clareza os caminhos de tal método: a imagem “deve ser pensada na relação – relação de conhecimento e não de expressão, de analogia e não de duplicação, de trabalho e não de substituição – que ela mantém com o real”[7]. No caso de um filme, o exercício se mostra particularmente difícil uma vez que o cinema, arte de reprodução por excelência, favorece a redução mimética segundo a qual relacionamos a imagem imediatamente à sua proveniência – como se os fenômenos pudessem, por um instante, se equivaler ao seu registro. (Instante que, sob o nome de aura, Walter Benjamin concedia à fotografia). Ao inverso, sem reduzir imediatamente o cinema ao real, nos autorizamos a questionar e a desdobrar as propriedades da semelhança (uma empreitada que ocupa uma obra fílmica e literária essencial, aquela de Jean Epstein), a pensar as diversas dimensões da abstração – plástica, logística, conceptual – que informam a representação figurativa, tendo em vista a maneira a qual um filme se projeta no mundo no mínimo tanto quanto o mundo passa nele. É a esse título que o método considera a figuratividade de um ponto de vista figural: ela leva em conta (prends acte) o gênio do cinema o qual, na medida em que ele desliga as coisas de suas decupagens regradas, é investido de um poder figural espontâneo, assim o escrevia por exemplo Siegfried Krakauer em 1927: “A desordem dos resíduos refletidos na fotografia não pode ser mais nitidamente explicitada senão pela supressão de toda relação habitual entre os elementos naturais. Levar isso a acabo é uma das possibilidades do cinema”[8]. De modo que a visada a mais difícil e frequentemente considerada como a mais elevada será, precisamente, a de chegar a uma exatidão necessariamente crítica, segundo a qual o cinema não refletirá as coisas segundo nossas acomodações usuais ao visível e ao real. “Não apenas relações novas, mas uma nova maneira de rearticular e ajustar”[9].

 

2) Considerar que os componentes de um filme não formam entidades, mas elementos. (Economia figurativa)

            Tal proposição, caro Tag, repousa sobre um pressuposto que não possui nada de particularmente audacioso e se verifica em cada análise: o cinema representa uma investigação ao mesmo tempo sobre o elo, sobre a conexão (rapport), sobre a relação. No cinema, tudo se encontra apreendido em uma circulação.

  • A morfologia da imagem, que consiste em transporte entre materialidade e imaterialidade, ou seja, um circuito entre o plástico concreto do fotograma, trabalho da projeção e translação geral dos diferentes tipos de desenrolar (aquele da película, aquele dos motivos, aquele das sequências, aquele da recepção). No cinema, a imagem não é um objeto, mas uma arquitetura.
  • As qualidades formais do plano, que um filme pode apresentar como transparente ao real, mental, simulacro, rede (filet), filtro, tela, parede…e mais geralmente, unívoco ou volumétrico.
  • O tratamento dos motivos, que um filme pode trabalhar sob o ângulo do contínuo (constância da coisa a si mesma até na deformação); sob aquele da dispersão, da intermitência ou da repetição (descontinuidades, injeções do heterogêneo, lógicas de desfiguração); sob aquele da complexidade (por exemplo, o motivo integra seu próprio desnudamento crítico, como nos Straub, ou “dois mil anos de representação”como dizia Pasolini sobre seu O Evangelho segundo São Mateus, ou o inacessível que abre para o princípio de sua literalidade como, exemplarmente, Eat de Andy Warhol onde somos obrigados a delirar (délirer) sobre as imagens que obcecam (hantent) o plano elementar de Robert Indiana mastigando seus cogumelos psicodélicos).

Do ponto de vista da figuração, o que isso significa? Simplesmente isto: elementos tais como a silhueta, o personagem, a efígie, o corpo, a relação entre figura e fundo, se colocam também a circular. Se, no real, a equivalência entre corpo, indivíduo e pessoa é objeto de uma malha identitária cada vez mais serrada, nada obriga a reconduzi-la ao cinema. No cinema, a silhueta não dá o corpo, pode haver personagem sem pessoa ou corpo sem suporte (Cat People realiza essa demonstração); uma figura só existe na medida em que se distribui em vários personagens (Viva Villa!); um personagem não provém do mesmo regime figurativo que os outros (para tomar um exemplo frequente, um personagem é a hipóstase da ligação entre dois indivíduos); as formas de seu tratamento variam ao extremo no centro do filme, onde podem coexistir o esboço, o estudo, o acabamento, o esgotamento (é frequentemente o caso no último período de Godard e, ao modo de Tintoretto situando suas figuras secundárias no primeiro plano, sem que isso recorte doravante as divisões narrativas clássicas entre protagonista, deuteragonista e figurante)…O cinema pode reconduzir mas também reabrir o conjunto de noções e divisões pelas quais apreendemos os fenômenos de presença, de identidade, de diferença. A figuratividade consiste nesse movimento de translação interior ao filme entre os elementos plásticos e as categorias da experiência comum: às vezes, mas bem menos frequentemente que pensamos, esse movimento se mostra simples (uma efígie / um personagem / um efeito de sujeito); às vezes ele é infinitamente complexo, até nos fazer debruçar sobre nossa própria experiência e por em causa (mettre en cause), por exemplo, nossos reflexos em matéria de singularidade, de presença e de soberania. Portanto, um filme se organiza necessariamente – e isto não significa deliberadamente – em uma economia figurativa que rege o conjunto dessas relações (a morfologia da imagem, suas propriedades formais, o tratamento dos motivos) a qual a análise tem, por tarefa, destacar. Veja você que tal procedimento (démarche) desihierarquiza as relações entre figura e fábula (esta constituindo nada senão um componente e ademais um fim), considera as figuras do ponto de vista de sua elaboração interna e evita pressupor sua coerência. Donde, o terceiro princípio.

 

3) Considerar os elementos de um filme como outras tantas questões. (Lógica figurativa)

            A análise figural não hesita em recolocar questões primitivas. Por exemplo, sobre o corpo: de que forma um filme coleta (préleve), supõe, elabora, dá ou subtrai um corpo? De qual textura é feito o corpo fílmico (carne, sombra, projeto, afeto, doxa)? Sobre qual ossatura ele se sustenta (esqueleto, aparência, devir, plásticas do informe)? A qual regime do visível ele está submetido (aparição, epifania, extinção, assombração [hantise], lacuna)? Quais são seus modos de manifestação plástica (clareza dos contornos, opacidade, tactilidade, transparência, intermitências, técnicas mistas)? Por qual acontecimento ele é desfeito (o outro, a história, a deformação dos contornos)? Que gênero de comunidade seu gesto deixa entrever (povo, coleção, alinhamento do mesmo)? Em que consiste verdadeiramente sua história (uma aventura, uma descrição, um panóplia)? Que criatura ela é no fundo (um sujeito, um organismo, um caso, um ideologema, uma hipótese)? Trata-se de procurar, em suma, como um filme inventa uma lógica figurativa.

Eu te dou, a grosso modo, um exemplo americano e dois franceses, no campo do cinema de ficção. A obra de John Carpenter, à maneira daquelas de Hitchcock, Fritz Lang, Val Lewton, Godard ou De Palma, provém de um projeto figurativo de ordem sistemática o qual, no seu caso, concerne a representação do Antagonista. Num primeiro momento, a adversidade é tratada sobre o modo do informe, infra ou ultra-figurativo: sombras anônimas em Assault on Precinct 13 (1976)[10], nevoeiro em Fog (1979), plasticidade geral do adversário que, em The Thing (1982), esposa (assume, épouse) a forma de tudo aquilo que ele devora[11]. A partir dessa extensão plástica que se inscreve ainda em uma lógica da efígie local, em um segundo momento, o antagonista se propaga e se torna um avesso do mundo: iminência do futuro em Prince of Darkness (1987), alienação capitalista em They Live (1988), invisibilidade social em Memoirs of an Invisible Man (1992) e síntese figurativa em In the Mouth of Mandness (1994), recapitulativo das formas de estranheza que culmina aproximadamente nesta frase, explicitando a fonte da angústia: “uma espécie estremece diante dos sinais de sua desaparição”, como se todos os esboços fantásticos repertoriados por Carpenter manifestassem outros tantos preparativos para um luto antropológico. Em seguida, reunindo a formidável trilogia de Body Snatchers, o outro se torna o mesmo com os netos (petits enfants) de Village of the Damned (1995). Então, depois dessa solução final (ultime) por homonímia, a adversidade se desloca e encontra uma quarta forma: o antagonista não é mais uma entidade, local ou universal, ele se torna um elo entre os fenômenos – nesse caso, o terror que reina entre homem e mulher, é o Vampiro no último filme até a presente data de John Carpenter (Vampires, 1998).

Vejamos, simetricamente, em Jean-Luc Godard e Eric Rohmer, como evolui o princípio figurativo que preside a representação de um mesmo motivo. Godard e Rohmer encontram ambos seus corpos de escolha (d’élection) no grupo das moças.  Entretanto – ainda que eles tenham podido estar afinados, na origem, quanto um mesmo repertório[12] – a significação da moça difere nas duas obras. Em Godard, sua presença oferece, antes de tudo, matéria à interrogação etológica: podemos atravessar as aparências, podemos acariciar uma alma (Vivre sa vie), como descrever e qualificar um gesto, como se dar conta desse mistério do cotidiano que emblematiza a moça? De Jean Seberg / Patricia Franchini (Àbout de souffle) a Anna Karina / Marianne Renoir (Pierrot le fou), é a mesma figura que reatualiza a irredutível cisão entre aparência e essência caracterizando a femme fatale e engana o mesmo Jean-Paul Belmondo todavia perfeitamente prevenido, e mais que elas próprias, sobre a duplicidade feminina. Em os Contes moraux de Erich Rohmer, a irredutibilidade concerne a liberdade da moça (de Haydée la colecionadora a Chloéde Amour l’aprés-midi). Mas, a partir da série das Comédies et Proverbes e o retorno à moça ou muito jovem moça, esta se vê investida de um problema que anteriormente concernia aos homens, esposos e noivos (desde La Boulangère de Monceau). Jean Douchet, acredito eu, mostrou como, retomando o esquema de Aurora de Murnau, Rohmer narrava incansavelmente o rodeio pelo qual um rapaz devia passar antes de ser fulminado pela evidência: seu amor pela prometida. Em Comédies et Proverbes, e particularmente desde Le Rayon Vert, a moça representa um modelo graças ao qual Rohmer observa a emergência de um sentimento de certeza (em geral a favor das questões “quem posso amar?” e “quem me ama?”).  A dialética (masculina) do raciocínio e da evidência é substituída pela (feminina) da hesitação e da decisão – livre de se remeter (s’en remettre aux) aos “signos”, por exemplo a aparição de um raio verde, para alcançar à certeza. Apenas alguns personagens secundários são de imediato (d’emblée) dotados dessa intuição absoluta pela qual Rohmer se filia ao Romantismo alemão, tal como a pequena menina no ônibus chuvoso (l’autobus pluvieux)de Conte d’Hiver que, sem a menor hesitação, reconhece seu pai o qual ela, no entanto, jamais havia visto[13]. Assim, o tema rohmeriano concerne sempre um comportamento da consciência (a reticência masculina dos Contes moraux,  a hesitação feminina das Comédies seguido dos Contes dês quattre saisons), mas as Comédies e os Contes dês quattre saisons constituem a extensão experimental do momento da intuição absoluta pela qual se terminavam os Contes moraux.

Vemos então que as questões (enjeux) que motivam a representação da moça em Godard e em Rohmer, se são muito diferentes, evoluem contudo da mesma maneira. De fato, após um tratamento extensivo da moça, a obra de Rohmer como a de Godard se concentra sobre um dos aspectos da descrição inicial. Em Rohmer, passamos da liberdade incondicional à observação daquilo que determina, livremente ou não, uma escolha. Em Godard, a moça, sujeito de interrogação etológica (a essência), objeto de celebração plástica (a aparência), e a esse título frequentemente confrontada à pintura, se apresenta daí em diante como um puro motivo iconográfico. Ela vem da pintura (Marie em Je vous salue Marie, as moças de Détective), ela provém da música (Carmen), ela vai [à música], a ela se rende (Passion), abandona toda pretensão de epifania e de parúsia (mesmo presos nas redes [rêts] da alegoria, Anna Karina, Jean-Pierre Léaud deviam liberar algo de sua incomparável singularidade, ou Mademoiselle 19 ans  de sua desoladora universalidade), ela se torna um dispositivo, um protocolo para a colocação (mise en place) de questões estéticas: de onde vem as imagens? O que podem elas? Em quais condições ela ainda mantém uma relação com o sensível? A moça não será mais um efeito da arte, uma possível impressão de presença, mas um fenômeno plástico: o corpo por onde os problemas modernos colocados pela existência da arte clássica irrompem no cinema. Assim, nos dois casos, a obra evolui segundo uma estrutura convergente, que consagra sua dinâmica à procura pelo seu próprio lar (foyer): a representação da decisão como cifra (chiffre) do espírito em Rohmer; as potências da imagem em Godard.

Deve-se encarar em seguida a lógica figurativa, não apenas como tratamento de um motivo, de um tema ou de uma forma singular, mas também em termos de agrupamento de figuras, no sentido sucessivamente plástico (o contorno corporal, a efígie) e retórico (encadeamento e desencadeamento, sintaxe e parataxe dos próprios elos). Podemos começar pelo aspecto mais simples, o estudo de um repertório ou de uma população fílmica. A própria representação de uma coleção de indivíduos remete a uma ou várias unidades de composição: cenografia dos conjuntos (grupo, multidão, horda…), tipo de corpos mobilizados pela descrição (emploi[14], máscaras/disfarces, maquetes/modelos…), elos homogêneos ou heterogêneos das figuras entre elas, e das figuras com aquilo a que elas remetem e com aquilo que elas projetam. No quadro (cadre) dominante das escritas do sujeito, a homogeneidade ou a heterogeneidade da população fílmica é considerada então segundo quatro eixos. O primeiro seria a constância e a inconstância do princípio figurativo que anima a agregação dos indivíduos. Reciprocamente, até que ponto uma singularidade se mostra significativa, o indivíduo chega à entidade ou se limita a aparecer como a parte de um todo? Ele é membro, célula, eléctron ou unicum? Qual é, em suma, o estatuto da individuação em uma economia figurativa? Em seguida, quais são as relações entre a população fílmica como conjunto e o povoamento fora-de-campo, a população induzida (o off, o fora-de-campo)? As figuras fílmicas aparecem como amostras, espécimes, protótipos, contra-campo, contra-modelos? Depois, quais são as relações desse Todo com o entorno sociológico, o out? Exemplaridade, reflexo, contra-posição, nenhuma relação? Enfim, quais são as regras gerais de organização entre essas diferentes esferas? Raridade ou profusão (dos indivíduos, dos Tipos; das próprias regras), estabilidade, mobilidade (dos elementos entre si e com seus conjuntos)? Em suma, considerar o funcionamento de uma população fílmica exige pensar a relação das figuras com elas mesmas (individuação mais ou menos aprofundada); sua relação com o conjunto (independência mais ou menos afirmada); sua relação com o outro (distinção mais ou menos fértil); sua relação com o real (diferença mais ou menos crítica). Mas deve-se também encarar essas elaborações à luz de estilos figurativos que não fazem da individuação o motor de sua escrita. A passagem, em John Woo, de Hard Boiled a Face Off, constituiria um modelo rico em ensinamentos. Veja, caro Tag, que não faltam questões, e que o essencial é isso. Eu te poupo por agora daquelas que concernem a sintaxe figurativa, mas retornamos a elas quando você quiser.

PARTE 2

4) Ver como o cinema problematiza aquilo do qual ele trata. (Por que o corpo).

            “Não há limites”, escrevia Hegel, “para a acidentalidade das figuras”[15]. Ele descrevia assim as formas do belo natural, mas o mesmo vale (il en va de même) para a figuratividade no cinema: em qualquer sentido que a gente a contemple (estado plástico, sintaxe, valores simbólicos), ela constitui um campo sem outros limites que não sejam aqueles do próprio cinema. (…)

No cinema, certas formas figurativas podem se mostrar dementes ou inertes, mas nenhuma nem insensata nem indiferente, e aqui nós temos um encontro marcado com a terceira razão. Na medida em que faltam os instrumentos analíticos necessários para sua observação, o corpo representa uma extraordinária alavanca metodológica. (…)

Em Body Snatchers, a fábula gira em torno de uma suplantação, a da Mãe pela da Madrasta, a partir da qual os motivos se põem a se deslocar e a se substituir, em um circuito maléfico da substituição induzida. Exemplarmente, o grito “Não é minha mãe!”é berrado pelo filho legítimo, o pequeno Andy, ao passo que é pensado pela enteada adolescente, Marti. No centro do filme, um conjunto sequencial intensifica as figuras de substituição: por desenvolvimento e multiplicação, elas se incarnam em corpos de estatutos cada vez mais estranhos e fantásticos. Marti, com um walkman nos ouvidos, cochila em seu banho; no quarto conjugal, Carol, sua madrasta, fricciona e massageia Steve, seu pai, ela o tranquiliza e o faz dormir. O snatching, que requer o sono de suas vítimas, pode começar: Marti na banheira, o pai sobre a cama, são invadidos por ligamentos esponjosos que os aspiram, os esvaziam e vão encher um outro corpo de substituição que cresce e se delineia progressivamente. Mas Marti subitamente desperta, seu duplo inacabado cai do teto-rebaixado na água da banheira, ela se debate, se livra dos tentáculos, e foge ao passo que a sósia, horrível moça de olhos vazios, flutua nos escombros da casa. Marti se precipita no quarto dos pais, implora ao pai que acorde, arranca os cordões esbranquiçados que o vampirizam. Ao passo que o pai acorda, seu duplo eriçado e pegajoso surge deslizando de debaixo da cama, agarra o calcanhar de Marti que se livra dele berrando de terror enquanto ele volta à obscuridade deixando rastros viscosos e sombrios. A madrasta impassível, espera seu esposo no saguão para convencê-lo a não resistir mais, dias melhores se anunciam se ele, como ela, como todos eles, renunciar à individualidade e à emoção. E ela lhe recita a litania enfeitiçante que Body Snatchers tomou emprestado de uma cena de amor de The Rise and Fall of Legs Diamond de Bud Boetticher: “Where do you gonna go? Where do you gonna hide? Where do you gonna run? Nowhere, because there is – no one – like you – left”. O pai desaba chorando sobre o ombro de sua mulher; Marti, que tinha ido buscar seu meio irmão Andy, interpela-o e arranca-o dos braços ameaçadores da sedutora. Os três fogem, enquanto a madrasta se transforma em Medusa aos urros e, boquiaberta, o indicador apontado para eles, designa-os para a vingança universal.

Para que serve essa proliferação de criaturas esponjosas? Por que essas quimeras que saem se arrastando de debaixo das camas ou que caem dos tetos? Pode-se subordiná-las às exigências normais do gênero, este certamente reclama o que lhe é devido em termos de monstros e de fantasmas. Pode-se considerar também que nenhuma aparição é indiferente e afirmar que, quanto mais a bizarrice se mostra, mais a clareza cresce. Aqui, por exemplo, nessa lógica do sósia, assiste-se subitamente a um acontecimento figural: algo, precisamente, não se assemelha. Por que uma fantasia se desregula? Por que passar pelo perigo da incoerência? Será preciso remeter o fenômeno à dispersão amorfa do sonho ou, ao contrário, a um redobro de vigilância no fundo mesmo do sonho (songe)? Sobretudo, por que essa invasão da fábula, por diferentes estatutos físicos? Por que os reflexos se comprimem subitamente no estado de rascunho, de esboço e de rasuras anatômicas, ameaçando de todos os lados (do alto, de baixo, de fora, de dentro) uma integridade do corpo que eles remetem à sua indizível fragilidade? Por que esses corpos que caem horrivelmente sobre outros corpos para fazê-los berrar?

Como o garante o som subjetivo do walkman, o conjunto sequencial provém do ponto de vista de Marti e desenvolve um cenário fantasmático: reconstituir uma família incestuosa. Marti procede em três etapas: primeiramente, interromper a cena primitiva, o que ela faz duas vezes, primeiro no quarto conjugal depois no hall, onde ela obriga Steve a repelir Carol. Em seguida, descreditar a mãe, que ela trata de Madrasta e, literalmente, de Alien. As fórmulas maternais típicas se invertem em ameaças fúnebres: chamar a atenção de Marti, “seu banho vai transbordar”ou dizer ao pequeno menino, “vá para a cama”, equivale a enviá-los para a morte, neste cenário, “durma bem”significa “morra”. Vê-se então que a desqualificação não se dirige a uma madrasta singular mas a uma figura maternal abstrata: a suposta suplantação inicial da mãe pela madrasta se torna hipotética e totalmente anedótica, ela também provém de um cenário do fantasma que lança tudo aquilo do qual ele trata em um circuito sem fim. Finalmente, tomar seu lugar: Marti se torna a mãe de seu irmão, ela pensa nele, o acorda, o toma nos braços, o veste, o carrega, o salva; ela ganhou, ela é o único elemento feminino de uma família sã, enquanto que a madrasta infecta o mundo e as consciências com sua intolerável presença. Mas, para que tal fantasma alcance a satisfação, foi necessária a invenção de procedimentos de translação, antecipação e repetição enredadas em um circuito somático intenso: são seis as vias da desfiguração.

 

O princípio do snatching

Invenção econômica da alteração absoluta por substituição do Mesmo pelo Mesmo. Ele permite a proliferação de todas as formas de metamorfoses, pois essas jamais afetarão verdadeiramente sua fonte: a ausência de pathos que, na ficção, caracteriza a espécie dos Body Snatchers, prova ao menos tanto a familiar estranheza das criaturas quanto a integridade inalterável daqueles que o fantasma procura devorar, como se, no momento de os destruir, o sonhador antes de tudo tomasse o cuidado de preservá-los, de selá-los em si próprios por meio de uma estátua hierática da qual apenas o acidental será abstraído.

 

A criação de ecos somáticos

Entre a filha e o pai, estabelece-se um sistema de ecos visuais e sonoros que os reconecta e os une fortemente. São dois nus, a filha em seu banho, o pai sobre sua cama. Eles se encontram em um meio aquoso, a filha na água espumosa, o pai untado pelo óleo de massagem assimilado a um filtro maléfico, nos dois casos preparados pela mãe com cheveux de sorcière[16]. Seu adormecimento simultâneo os mergulha em uma situação onírica ajudada por duas hipnoses sonoras, a música do walkman para Marti, o embalo dos “Eu te amo”da mãe para Steve, declarações amorosas e carinhos recolocados em cena à semelhança de convites à morte. Enfim, eles se encontram em dois espaços contíguos: o snatcher de Marti vem de cima, ele cai do teto, o do pai vem de debaixo, ele surge do assoalho sob a cama, como verso e reverso da mesma figura bífida. Em suma, o filme trabalha para unir pai e filha.

 

A invenção de corpos paradoxais

A sequência produz três deles. Primeiro, dois corpos reconhecíveis. O sósia que Marti deixa para trás com pavor equivale a um cadáver inacabado; o do pai, a um velho que ainda não nasceu, segundo uma inversão biológica cujo imaginário remonta à descrição por Hesíodo da Idade do Ferro, era última da invasão do mundo pelo negativo onde os homens nascerão em sua forma senil e viverão regredindo sua vida. Aqui se mostra pois uma bizarrice apaixonante: ao contrário dos outros snatchers que procedem por mimetismo exato, o duplo do pai não se assemelha a ele, é um velho, uma figura de ancestral, cujo aspecto enrugado e viscoso evoca mais a putrefação e a liquefação do que o desabrochamento de um corpo[17]. Seu duplo sublinha por complementação a extrema juventude do pai, facilmente emparelhado a sua filha em razão de seu caráter adolescente (imputado pelos militares do campo onde ele se instala com sua família ao seu esquerdismo de ecologista atrasado). Segundo essa escolha figurativa inicial, o pai pode passar pelo namorado de sua filha; mas aqui, ainda mais violentamente, ele se torna seu filho: é preciso embalá-lo, ajudá-lo a dormir, ele não acorda sozinho, ele não toma conta de Andy, ele chora nos braços de uma mulher, seu comportamento irresponsável o infantiliza, ao passo que Marti se afirma como chefe de família. Mas a mais estranha figura de todas é o corpo intermediário entre pai e filha: os planos dourados de gestação surda e de embrião operam um raccord entre o baixo e o alto, a filha e o pai, não se sabe a qual snatching eles pertencem, eles produzem um corpo de transição; um corpo a mais, um corpo que desloca muito mais do que substitui. Tal figura representa ao mesmo tempo o nó do problema: que é um corpo, que há entre os corpos?; o monstro do incesto; o corpo da indistinção entre os corpos; e já a criança, o produto do incesto. Uma pura figura de proibição e para além mesmo, um complexo psíquico do qual Body Snatchers desenvolve uma descrição frontal, circunstanciada e crítica.

 

Investigação sobre a simbólica da organicidade

Don Siegel bem como Philip Kaufman, nas versões antecedentes desse filme do qual Abel Ferrara diz com muita justiça que seria preciso refazê-lo a cada ano, The Invasion of the Body Snatchers (1956 para a primeira versão e 1978 para a segunda), tinham privilegiado a elipse e o enigma: esse corpo subitamente reaparecido, será que ele era o mesmo ou o outro? Era preciso confiar nos sentidos ou na intuição? Abel Ferrara ao contrário desdobra a metamorfose e o mistério: ele trata visualmente o detalhe físico da mutação e mergulha no mais secreto do corpo, expõe suas dobras, seus estratos e sua substância, em imagens que reata a notável invenção iconográfica sobre a migração cósmica dos vegetais extraterrestres pela qual começava o filme de Philip Kaufman. Recorrendo ao mesmo criador de efeitos especiais, Tom Burman, o filme de Ferrara apresenta-se explicitamente como um enxerto, ele absorver a herança legada pelos seus predecessores (a fábula paranóica) mas ele reinveste seu núcleo até então deixado obscuro, isto é, a prova (épreuve) mesmo de ter um corpo, que integra a experiência de apreender aquele [corpo] de um outro.

Ao menos cinco traços caracterizam o tratamento da organicidade em Body Snatchers, começando pela angústia primitiva que se prende aos orifícios. Os orifícios visíveis: o nariz, a boca, as orelhas, os olhos, o que se tapamos quando do embalsamamento para que a corrupção não entre e que são as aberturas por onde se infiltram, fazendo um ruído confuso, as raizinhas fantásticas. Os orifícios invisíveis: a carícia oleosa torna todo o corpo poroso, abre em cada um de seus pontos, a massagem torna-se amassadura [como da massa do pão], escultura que oferece o corpo ao informe. É claro que trata-se de fazê-lo dormir, mas sobretudo de desfigurá-lo e aqui, o plano que balança para acusar o caráter informe das costas modeladas pela mãe e que evoca inevitavelmente o preâmbulo de Hiroshima, mon amour, indica que o filme se coloca deliberadamente do lado do fantasma. Em uma ampliação monstruosa, os poros paternos são retomados pelos buracos do teto que deixa filtrar a reptação dos tentáculos em direção à filha: um imaginário da penetração como estupro banha todo o espaço.

Em seguida, a própria substância orgânica torna-se objeto de um tratamento profundamente arcaico. O corpo aqui não consiste em uma armação de carne e osso, mas de uma mescla de plantas aquáticas, de bulbos e de filamentos que confundem três substâncias originais: o plasma, a placenta e o plâncton. Do plasma, os planos de gestação em Body Snatchers retém as virtudes plásticas de líquido opalescente e viscoso, a qualidade germinativa, a estrutura orgânica complexa e certamente o fato de ser depositário dos caracteres hereditários. Da placenta, eles retêm a massa carnuda e esponjosa e sobretudo, esse fenômeno essencial que representa um órgão de origem meio fetal, semi maternal, isto é, o único órgão intermediário: pertence aos dois corpos ao mesmo tempo e assegura sua transição. Do plâncton, retêm a capacidade de se deslocar, a transparência, a coexistência do vegetal e do animal assim como a eventual posse de órgãos venenosos, que introduz a morte no conjunto de matérias vitais e férteis. Assim, os planos de gestação assumem indistintamente a filogênese (a formação da espécie) e a ontogênese (aquela do indivíduo), confusão operada graças ao modelo biológico vegetal da germinação. A imagem do embrião remete, então, simultaneamente à espécie humana em geral e à arqueologia da vida, um complexo de abstração, de vegetalidade e de animalidade que obscuramente informaria o humano. Reinscrita no circuito do fantasma singular, essa imagerie biológica reveste também uma significação psíquica: um sonho de incesto devora a humanidade desde a origem. A esse título, o embrião de Body Snatchers forma um díptico figurativo com aquele de 2001: o feto astral de Kubrick tem a ver com o futuro, com o recomeço, com  o devir; a criatura inciativa de Ferrara, com as origens da vida, com o arcaico e com a maledição.

Mas essa imagerie arcaico está banhado em um cromatismo ultra-moderno: os matizes fluorescentes não são apenas aqueles de uma fosforescência natural, aliás sempre sinal de um acontecimento na dimensão do visível[18], mas também os [matizes] dos neons, das irradiações e das fissões atômicas. As cores modernas amarelas e verdes, redistribuem os motivos segundo pelo menos três efeitos: elas dizem a atualidade do arcaísmo afetivo na economia psíquica; o caráter “cegante”(aveuglant) do fantasma; e que é preciso de agora em diante rever a humanidade à luz ofuscante de Hiroshima, de Minamata e de Chernobyl.

Não há aí nem contradição nem mesmo tensão, ao contrário: a equivalência do arcaico e do moderno afirma-se notadamente graças ao eco visual estabelecido entre os fios negros do walkman e os filamentos leitosos do snatching que vibram em concerto em torno do rosto de Marti. A analogia permite ao mesmo tempo insistir sobre o caráter subjetivo e onírico do fenômeno; e de resolver a co-presença de tais elementos simbólicos: trata-se de assistir à ressurgência do arcaico na evidência do atual.

O último elemento maior ao qual a sequência recorre para tratar da organicidade também é moderno: são os véus de plástico sobre os quais crescem os snatchers, ao mesmo tempo camadas de gelatina dourada e lonas herméticas para cobrir os cadáveres. Nessa cobertura transparente,  preguiado, que sufoca e protege ao mesmo tempo, o corpo se encontra embalado, já congelado, industrializado, protegido do contágio microbial; mas aqui, o que é embalado e conservado é a própria contaminação, a propagação do complexo, a proliferação má. A invenção de uma tal substância permite afrontar a natureza indecidível da proteção, simultaneamente necessária e asfixiante: dificuldade que tem a ver ao mesmo tempo com o tormento adolescente (como suportar os pais) e com um problema industrial muito atual – a conservação metamorfoseia e destrói a vida tanto quanto a preserva da corrupção. No mundo industrial, de que se lado se encontra a toxicidade? Do lado dos micróbios ou dos conservantes? Body Snatchers trata frontalmente dessa questão nova e de agora em diante ordinária.

 

A circulação anatômica

A orelha, o torso, as costas, a boca fazem aqui o objeto de planos inesquecíveis. Mas a circulação privilegia dois órgãos de alto poder simbólico, o olho e a mão. O circuito do olho revela-se rico em paradoxos. Ele começa sobre os olhos fechados de Marti adormecida: as imagens vêm de quem não olha nada. Continua sobre os olhos em gestação do embrião: no fundo das imagens mentais, um olhar se forma, as imagens estão sempre nos olhando. Esse olhar sem sujeito remete à sequência anterior, um campo-contracampo múltiplo em travelling antes entre uma mãe branca, Carol, e uma mãe negra desconhecida (ela leva uma criancinha nos braços para que sua identidade não seja duvidosa), que acabava em um primeiro plano dos olhos de Carol: no fundo da vida, subsiste e se agita o horror de ter uma mãe, boa ou má, forçosamente má porque ela representa a dívida impagável de por no mundo. Como Carrie, Body Snatchers enfrenta a angústia da filiação mas, se o filme de Brian de Palma havia escolhido o motivo do sangue para tratar disso, o de Ferrara recorre a um motivo mais problemático ainda, a placenta, que dá um assento fisiológico eminentemente concreto a esse horror de ter um corpo em comum. O terceiro olhar, são os olhos vazios de Carol, figura da ausência a si mesma. A mãe e a filha introduzem, pois, cada qual a um modo de alucinação antitético: Marti deixa proliferar a transferência que desfigura; Carol faz proliferar a exatidão do mesmo, seu discurso final de Pítia anuncia o reino da semelhança universal, uniforme e sem resto. A figura de Marti representa assim a imagem como complexo, isto é, como proliferação sensível da alteração. A de Carol, a imagem como decalque, invasão da imagem como mesmo e [invasão] da mesma imagem por toda parte (narrativizada sob a forma do esquadrinhamento (quadrillage) militar do mundo pelos Body Snatchers). Enfim, o filme não precisa insistir sobre os olhos arregalados de Marti assistindo ao mau amplexo de seus pais. Nesse circuito, desaparece evidentemente a possibilidade de um olhar usual, um olhar que acomodaria convenientemente ao exterior (sur l’extérieur) para admitir sua diferença.

O circuito da mão não é menos fértil. Ele começa com as carícias de Carol. Depois o primeiro membro identificável no corpo em gestação é uma mão de dedos compridos, que sinaliza uma dimensão desta vez mitológica na criação da vida. A mão do duplo cadavérico de Steve que agarra o calcanhar de Marti, única relação tátil entre o pai e a filha e único resíduo de terror nesse filme de angústia, atualiza o incesto a título de uma intolerável captura (saisie). A sequência termina sobre o indicador que Carol está apontando, associado ao seu berro de danação. Mas de maneira mais geral, os órgãos de preensão se anamorfizam e se prolongam nesse entrelaçamento grudento do snatching que esvazia o ser: eles manifestam a fobia do contato que exacerba por ocasião da adolescência, quando se torna tão difícil ter um corpo e tolerar o dos outros. A insistência sobre a mão, como membro e como suporte do gesto, permite abrir a questão do domínio: domínio ameaçador do exterior sobre o interior; domínio recíproco do fantasma sobre o real.

 

Plástica da permeabilidade

Body Snatchers representa assim uma investigação vertiginosa sobre a permeabilidade dos fenômenos. O princípio do snatching permite uma exteriorização das redes orgânicas humanas, de duas maneiras: ele resume as diferentes redes corporais, vísceras, sistema nervoso, musculatura, etc.; e metaforiza o movimento das substâncias, seja como circulação (sanguínea, nervosa…) ou como transformação (corrupção, gestação…). O interior do corpo não se dá mais na aparência do esfola [sem-pele] mas do rizoma. Por que?

Porque o que se exterioriza subordina a imagerie corporal a uma lógica do fantasma e porque o corpo humano não é mais dado como uma coisa objetivável, mas como a matéria-prima do sonho. Aqui, de fato, não se encontrará mais vestígio de carne mas somente da somatização, isto é, a restituição do trabalho do imaginário sobre o corpo: desejo de penetração, desejo de incesto, desejo de maternidade. Ver a nu o funcionamento do fantasma expõe, pois, a ver um monstro: são as translações abusivas, as junções indevidas (por exemplo, do alto e do baixo), as figuras impossíveis (cadáver inacabado, velho natimorto com o qual atingimos talvez o cúmulo da fantasia, Marti faz abortar seu pai). A última palavra de Body Snatchers é a da mãe: “there is no one like you left”, “não  resta ninguém como você”. Ela resume o problema da singularidade: “este corpo é o meu, eu sou este corpo, não haverá outro”, a singularidade da Pessoa é irremediável, ela se experimenta como isolamento trágico, que o filme cenariza como paranoia; mas “eu sou qualquer outro”, ela é também impossível, porque, como descreve Body Snatchers, o indivíduo permanece assombrado por um sonho de fusão, representado aqui pelo fantasma de incesto e de maneira mais geral, por um pesadelo de junção tal que o corpo se liga a tudo e não importa em que, apesar dele, até o delírio, até o esgotamento.

Assim, o recurso ao duplo exuma o inconfessável redistribuindo os signos corporais e assegura a indistinção do real e do sonho (a somatização). Nessa economia figurativa, a dimensão política do filme, isto é, o tratamento crítico da exigência de mutação fisiológica e mental que exigida do homem pela civilização industrial e militar, se observa no fundo da intimidade fantasmática. Mas sobretudo, é o trabalho das imagens encaradas como protótipos de relações possíveis que, em Body Snatchers, articula com rigor a hipótese de um arquivo somático e uma reflexão de ordem antropológica sobre o que ameaça a espécie. Caro Tag, você acha que uma outra disciplina poderia tratar um corpo de maneira tão profunda e ao mesmo tempo tão acessível ou melhor, amável? Certamente, todos os filmes não se revelam tão audaciosos e inventivos, mesmo que eles se mostrem frequentemente muito mais ricos do que se crê; mas no cinema, acontece que a menor aparição de uma silhueta se torna apaixonante. Pois bem, eis aí o essencial do que eu esperava poder te dizer, considere o resto como um prelúdio bem longo. Uma última observação todavia: a análise figural encontrará instrumentos essenciais quando abordar o continente desconhecido do cinema científico.

Desejando-te força para o fim de seu texto sobre McCarey,

sua amiga,

Nicole.

 

[1]Tradução de Pedro Veras, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social – UFMG

[2] Gilles Deleuze, Claire Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1996, p. 60

[3] Blandine Barret-Kriegel, La défaite de l’érudition, Paris, Presses Universitaires de France, 1988.

[4] Hans Tietze, Die Methode der Kunstgescgichte, Leipzig, Verlag von E.A. Seemann, 1913. (Seu índice foi traduzido em “Le génie documentaire”, Admiranda, Cahiers d’Analyse du Film et de l’image, nº10, 1995, pp. 146-148).

[5] Otto Prächt, Questions de méthode en histoire de l’art, 1977, tr. Jean Lacoste, Paris, Macula, 1994, p. 163.

[6]Philosophie de la nouvelle musique, 1958, trad. Hans Hildebrand et Alex Lindeberg, Paris, Gallimard, 1979, p. 53.

[7] Hubert Damisch, Théorie du /nuage/, Pour une histoire de la peinture, Paris, Seuil, 1972, p. 310 (Soulignépar H.D.)

[8] Siegfried Kracauer, “La Photographie”, outubro 1927, em Le Voyage et la Danse. Figures de ville et vues de films, Philippe Despois éd., tr. Sabine Cornille, Paris, Presses Universitaires de Vincennes, 1996, p. 57. Ao invés de retraçar a história das noções de “figurativo”e “figural”(você leu Figura de Erich Auerbach, é suficiente prolongá-lo com Discours, Figure de Jean-François Lyotard e sobretudo Francis Bacon, lógica da sensação de Gilles Deleuze), eu te dou uma definição prática disso que ressalta as considerações de Krakauer ou de Jean Epstein: “O figurativo implica a decupagem comum que uma sociedade faz de seu mundo natural. O figural implicaria, por sua vez, uma articulação – apreendida ou produzida – do mundo visível, ou de um universo visível construído cujas unidades não são ainda ‘temperadas’(appretées) pelas figuras do mundo natural”. Jean-Marie Floch, “Images, sgnes, figures”in Revue d’Esthétique nº8, 1984.

[9] Robert Bresson, Notes sur le Cinématographe, Paris, Gallimard, 1975, p. 108.

[10]Sobre o problema do anonimato nesse filme, cf Olivier Bohler, “Morituri te salutant. Autour d’une séquence censurée de Assault on Precinct 13”, in “Fury. Le cinéma d’action contemporain”, Admiranda / Restricted nº11-12, pp. 111-114.

[11] Cf Sébastian Clerget, “Le sur-monstre”, in “L’invention figurative”, Admiranda nº6, 1991, pp. 92-96

[12] Na série Charlotte, e notadamente, Tous le garçons s’appellent Patrick (1957).

[13]“O universo, não podemos nem explicá-lo nem compreende-lo, apenas intuí-lo e revelá-lo”. Schlegel, Idées, fr. 150, in Philippe Lacoue-Labarthe et Jean-Luc Nancy, L’Absolu littéraire. Théoria de la littérature du romantisme allemand, Paris, Seuil, 1978, p. 222.

[14]De acordo com o dicionário, trata-se de um gênero de papel representado pelo mesmo ator ou pela mesma atriz no teatro. [N.T.]

[15] G.W.F. Hegel, L’Esthétique (1835), tr. S. Jankélévitch, Paris, Flammarion, 1979, vol. 1, p. 207.

[16]Nome popular dado à planta tillandsia usneoides, segundo alguns sites de botânica. Assemelha-se muito, na aparência, aos fios e “cordões”usados no processo de snatching no filme. [N.T.]

[17] Se ele se assemelha fielmente a alguém, é o próprio diretor, Abel Ferrara

[18]“O objeto da vista é o visível. Pois o visível é, em primeiro lugar, a cor e, em segundo lugar uma espécie de objeto que é possível ser descrito pelo discurso mas que, de fato, não tem nome”. Essa “espécie de objeto”são os corpos fosforescentes, corpos paradoxais pois eles se tornam visíveis na obscuridade. Aristóteles, De l’Âme, II, 7, 418a et 419a, tr. Jean Tricot, Paris, Vrin, 1982, pp. 105-109.c

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