As recorrências na obra de Bong Joon Ho e Parasita (2019)

Parte 1 – Os filmes iniciais e os temas (e variações) de Bong Joon Ho

Incoherence, curta-metragem de 1994, é um nascedouro das ideias e variações de encenação centrais dos filmes de Bong Joon Ho. Dividido em quatro episódios relacionados entre si, o primeiro episódio é sobre um professor que esquece uma revista adulta na mesa de sua sala, e ao pedir para uma aluna fazer o favor de pegar algo nessa sala, lembra que deixou a revista na mesa e sai correndo, desesperado, para agir e encobrir o fato. Se a aluna visse, sua reputação poderia ser arruinada. A decupagem (escolha das escalas dos planos) e a montagem da ocultação, numa tentativa de exímio formal, é expressiva em sua minuciosidade nessa cena (a câmera lenta também retornará nos filmes posteriores, nem sempre de maneira essencial: há excesso delas e Expresso do Amanhã (2013), onde o papel de dar ênfase ao acontecido não está presente, como nas cenas em que ela é usada de maneira mais apropriada e justificada). Tal exímio persistirá em todos seus filmes e atingirá seu auge em Parasita. Agir para fazer alguém não ver (seus disfarces) é similar ao que a família Kim fará em cenas e no desfecho de Parasita, que é um filme sobre o quanto é possível criar e manter as máscaras sem deixá-las cair (e a que preço). O terceiro episódio de Incoherence começa e termina em um porão, local central em pelo menos Cão Que Ladra Não Morde (2000), Memórias de um Assassino (2003) e Parasita (2019)em O Hospedeiro (2006), a variação é que a filha se perde nas reentrâncias do subsolo da ponte, entre canos de esgoto. No quarto episódio, o professor libidinoso se torna um moralista na TV, questão de disfarce e do que pede a circunstância. Sobre circunstâncias, Bong parece sempre mais interessado em como os personagens reagem as situações do que pelos ocorridos (com todos os seus exageros e absurdos) em si.

O porão em Incoherence (1994)

O porão em Parasita (2019)

Para além de questões temáticas, há em seus filmes diversas recorrências [1]:

Sangue e outros fluidos corporais:

Em O Hospedeiro, Expresso do Amanhã, e Okja, os protagonistas passam a maior parte do filme com o rosto cheio de sangue ou alguma outra sujeira (biológica, como excrementos). É como se esses personagens, para melhor explorar suas capacidades de expressão, precisassem fazer valer de suas funções biológicas, ou mesmo, serem sujos por tais fluídos. Em Parasita, a cena final se torna banhada de sangue: no rosto do morador do porão, nas mãos do pai Kim, as facadas, o sangue no chão do filho, etc. Uma das cenas mais visualmente terríveis do cinema de Bong a é do monstro vomitando ossos dos corpos humanos em O Hospedeiro.

As famílias:

Bong sobre o assunto:

“Eu acho que todos os personagens são desenvolvidos pelas interações com os outros. Particularmente em Parasita, pois toda narrativa é desenvolvida através dessa união familiar [dos Kim], se você olha como eles falam e tratam um ao outro, fica muito fácil entender suas personalidades individuais. Mesmo com o bêbado na rua, os quatro membros  da família tem diferentes atitudes quanto a ele. Então, os personagens principais são desenvolvidos pelo filtro desses personagens secundários.

Com exceção de Memórias de um Assassino, meus filmes sempre são centrados em torno de uma família. A maioria das famílias em meus filmes são separados de alguma maneira estranha, ou lhe faltam algo, lhe faltam uma parte. Meus filmes possuem situações extremas para essas famílias. O Hospedeiro é sobre um pai que tenta salvar a filha que é sequestrada por um monstro – é uma estória muito estranha. Então, minhas estórias sempre começam com família que são incompletas, e eu os guio para situações extremas. Famílias são a unidade mais básica de união de pessoas que encontramos no dia a dia, então eu tenho o impulso de guiá-los em situações muito únicas”. [2]

Os “pequenos favores”:

Em Cão Que Ladra Não Morde é preciso uma propina para subir socialmente. Em Mother, a mãe leva brindes aos policiais da primeira vez que o visita; depois, paga um criminoso para questionar suspeitos. Em Expresso do Amanhã, é necessário subornar o hacker com droga. Em O Hospedeiro, é preciso subornar um guarda com moedas para ter acesso à ponte. Em Okja, é preciso dar o elefante de ouro para comprar o animal-título. Em Parasita, a antiga governanta tenta subornar a nova governanta, sem sucesso.

Variações dos (im)possíveis dos sentidos:

-erros de percepção: em Cão Que Ladra Não Morde, Yun-su, ao ver um cachorro, pensa que acabará de ser infernizado por seu latido ao sumir com ele. Mais a frente, verá num panfleto que era um cachorro que não latia. Em O Hospedeiro, o pai pensa estar segurando o braço da filha mas era outra menina: erro de atenção.

-erros de coordenação motora / extrema precisão: o escorregar do pai Kim no porão em Parasita; o deixar cair a pedra de Ki-Woo no porão do mesmo filme. No lado da precisão: a flecha que acerta o olho do monstro em O Hospedeiro, a troca perfeita de tiros no trem em movimento em Expresso do Amanhã (que exigiriam cálculos impossíveis de serem feitos em segundos), exigindo suspensão da descrença em excesso.

-ver e não ser visto / ver e se implicar no que é visto: sem componente voyeur, ver pode ser uma simples coincidência, mas que implicará se envolver no que foi visto. Em Cão Que Ladra Não Morde, testemunhar o ato criminoso faz a personagem ser catapultada na trama. Em Parasita, no clímax, o pai da família Kim, ao ver o asco que o patrão sente pelo cheiro de porão do ‘invasor’, lembra do asco que ele próprio sofre, e isso unido à impossibilidade de melhora existencial, o motiva a tomar a ação assassina por impulso.


Ver e não ser visto em Parasita

– ver, mas não distinguir o que é: em O Hospedeiro, há um momento em que um grupo de pessoas vê a silhueta do monstro na ponte, mas não consegue entender o que é; em Mother, o filho precisa lembrar de detalhes do que foi visto, como um rosto numa fresta da janela, para esclarecer o ocorrido e se inocentar.

-ver/flagrar e gravar como modo de obter provas para poder incriminar: Memórias de Um Assassino, Okja (gravação de áudio e de vídeo), Parasita. Em Cão Que Ladra Não Morde, o criminoso é flagrado apenas pelas costas (porém não gravado), e assim, diferentemente, não é distinguido.

-ver mentalmente, relembrar, pode ser um ativador de traumas, causando efeitos visíveis e veementes no corpo: em Mother, quando lembrada da infância do filho, a mãe tem um choque/susto idêntico ao da esposa Park (Yeo-jeong Jo) quando conversa com a ‘terapeuta de arte’, ao ser lembrada do ocorrido com seu filho, que viu o ‘fantasma’ do porão.

-ver é ser atacado via olhos. Ver algo terrível é insuportável, causando desmaios: como a esposa Park ao ver o pandemônio final em Parasita. Antes, ao ver o sangue falso na lixeira, ela quase desmaia, e fecha os olhos para amenizar o que vê. No fim do filme, ao ver o marido esfaqueado, ela de fato desmaia.

-não querer ver para fugir da ameaça: de maneira quase infantil, os personagens tapam os olhos ou viram o rosto para não ver a ameaça que chega.

Não querer ver a ameaça de ser descoberto em Cão que Ladra Não Morde

Não querer ver a ameaça de ser descoberto em Parasita

-não querer ver o mundo, pois esse se tornou insuportável: umas das imagens mais fortes (dramaticamente, mais que graficamente) de Parasita são quando o pai da família Kim põe o braço em cima dos olhos para não querer ver mais nada do mundo em que vive. Primeiro por vergonha ao ouvir (na frente dos familiares) que tem um cheiro repugnante. Depois, quando a desesperança atinge seu limite.

Vergonha ao ouvir um relato humilhante: a opinião real que o patrão Park tem sobre ele em Parasita

Desesperança completa do mundo em que se vive em Parasita

– se esconder para não ser visto (em todos seus filmes)

– ter que ver UM no meio de MUITOS (Memórias de um Assassino na mina; Okja  no abatedouro)

– ouvir e não ser visto: em Parasita, a filha da família Kim escuta escondida a conversa entre os patrões sobre a demissão do motorista; a cena em que a família Kim escuta os casal conversar/transar no sofá.

Ouvir e não ser vista em Parasita

– sentir o cheiro [3] mas não ver: na mesma cena onde a família Kim está presa debaixo do sofá em Parasita, o patrão reconhece seu cheiro.

– não ver: a cena da fumaça [4] com sumiço do terceiro cachorro em Cão Que Ladra Não Morde; a cena da luta no escuro em Snowpiercer (2013): não ver e ser visto de um lado, ver e não ser visto de outro (com ajuda de óculos noturnos).

-não ver e não ser visto: o média-metragem Shaking Tokyo, do filme de 3 episódios Tokyo! (Michael Gondry, Leos Carax, Bong Joon-ho, 2008) é sobre um ser recluso que vive a 10 anos sozinho sem ver ninguém e sair de casa. Quando faz contato visual, causa tremores na cidade. Quando finalmente sai de casa, nota que não há nada nem ninguém para ver.

Em Cão que Ladra não Morde, ver é se implicar no que foi visto

Em Parasita, ver é se comunicar com o não visto (receber uma carta em código Morse)

Certas construções e triangulações de pontos de vista chamam atenção pela sua complexidade: em Memórias de um Assassino, há uma cena onde o investigador local, acompanhado de um amigo, vê seu companheiro de trabalho (de Seul) procurar pistas nos locais dos crimes, assim como eles: ver e não serem vistos. Sucede que um suspeito aparece, e ele não é visto pelos dois grupos de pessoas. Acontece que o grupo de duas pessoas faz barulho e é descoberto: não ser visto mas ser ouvido. Assim, a triangulação e embaralhamento dos pontos de vista foi:  investigadores 1 e 2 veem e não são vistos; investigador 3 vê e não é visto pelo suspeito mas é visto pelos investigadores 1 e 2; e o suspeito que vê ninguém, mas logo os escuta.

Ainda em Memórias de um Assassino, o tema das encenações (e ensaio para tal) já está presente, como em Parasita. Após uma confissão ambígua motivada pela tortura e ameaça de morte, o primeiro suspeito começa um relato vívido, mas que logo é descartado por parecer absurdo demais. Ali, as fronteiras entre atuar e relatar são tênues, indistinguíveis, até aquele relato retomar como pista real, para logo ser perdida novamente: jogos de gato e rato sem fim. Posteriormente no filme, o investigador de Seul pergunta se aquilo tudo não foi encenado:

Memórias de um Assassino

Cão Que Ladra Não Morde (2000)

O tema da ascensão social e do fim da dependência (e ordens humilhantes) da esposa é colocado logo de início. Yun-su está estagnado profissionalmente, é apenas um estudante. Ele perde as oportunidades de virar professor e assim entra numa espécie de miséria existencial e frustração extrema. É relevante que ele não quer matar os cachorros por eles o atrapalharem de estudar ou algo do tipo: sua vida é tão frustrante que o leva a tais atos. É uma situação parecida com a família Kim, para quem não há comemoração possível: nas 3 vezes que confraternizam são interrompidos, duas pelo urinador e uma pela antiga governanta. E são confraternizações com gosto amargo, pois as pequenas conquistas diárias não os fazem sair da situação de dependência/subjugo em que vivem.

Há também uma cena em que Yun-su está dormindo quando sua esposa chega. Em Parasita, é a esposa da família Park que dorme quando Ki-Woo fará a entrevista, e mais a frente, quando o marido chega. Essas cenas mostram quem é o(a) provedor(a) da casa e quem tem tempo ocioso disponível.

Em Cão Que Ladra…, o espaço dos condomínios e mesmo as ruas onde decorrem a ação são quase sempre mostrados inabitados. Uma mistura entre gente demais morar ali (quadras com inúmeros apartamentos), porém ninguém realmente nas ruas (ou nas janelas) para ver/testemunhar o que acontece. E, na mente do perpetrador Yun-ju, se ninguém está vendo, não há problema ético nem jurídico envolvido. Isso se encontra com a explicação do pai em Parasita:

‘Se ninguém viu, não é crime’ em Parasita (2019)

Essa ideia de impunidade é a mesma que move Yun-ju em Cão Que Ladra… Na trama, alterna-se entre atos praticados no porão e os à vista, que, pela paisagem inabitada, parece sempre que ninguém está vendo. Quando surgem as duas amigas como testemunhas do crime de Yun-Ju, uma possível revelação torna o infrator passível de punição, o que o levará a fazer algo a respeito – em Parasita, depois da família Kim ser descoberta em seus disfarces, Ki-Woo precisa criar um plano final para ‘resolver o problema ‘ no porão. O que sucede em Cão Que Ladra…  é que Yun-ju precisará dar pistas para as recém-amigas que seu comportamento psicopata mudou, não adianta só atuar/fingir. Para ser honesto, Yun-Ju tentará reencenar a fuga para mostrar seu verdadeiro eu (o encenar / reencenar sempre terá papel fundamental em seus filmes). Essa curva dramática, de criminoso a salvador, é incomum e serve de exemplo para possíveis julgamentos dos personagens de Parasita, todos ambíguos às suas maneiras.

Sobre a questão das aparências (central em Parasita), em Cão Que Ladra Não Morde a esposa é mostrada como egoísta e desumana com o marido, fazendo valer sua posição de poder como mantenedora da casa. É uma relação similar a que a família Park tem com a família Kim em Parasita, de posse, ambos podendo exigir o que for, como quebrar centenas de nozes ou pedir para se vestir de índio no fim em Parasita, pedidos que tem um quê de humilhação (é “parte do trabalho”, diz o patrão em Parasita). Eis que uma surpresa quebra tal construção: quando recebe uma boa soma de dinheiro do seguro-desemprego trabalho, Yun-su pergunta revoltado por que ela comprou um cachorro ao invés de ajudá-lo, já que ele está sempre precisando de dinheiro (idem a família Kim em Parasita). Ela responde que ganhou 13.000, pagou 300 no cachorro e guardou 10.000 para o seu suborno (aproximadamente, pois as legendas do filme não correspondem aos valores das notas). Assim, a imagem de mulher cruel que parecia ser fixa, logo cai por terra.

A vontade de ascensão social em Cão Que Ladra Não Morde (2000): “Seu pai será um professor”, diz Yun-su, bêbado.

Se a motivação para matar os cachorros é opaca, todos os atos do filme são mostrados em seus detalhes. Assim, não há mistério sobre os atos e elementos, como em Parasita (exemplo, a pedra dada como presente possuindo elemento misterioso): a encenação se encarrega de mostrar cada ação. Há um efeito cômico vindo desse ‘tudo mostrar’: no início de Cão Que Ladra…, Yun-ju tenta de diversos modos de matar o pequeno cachorro no porão, incluindo uma forca improvisada. Aos olhos de uma testemunha, seria uma ação extremamente cruel, mas como não há ninguém vendo…

Há também uma triangulação complexa de pontos de vista em Cão Que Ladra. Ao ver que ter sumido com o cachorro pode minar sua carreira, Yun-ju volta onde o deixou preso no armário (na intenção de matar) para salvá-lo. Quando desce no porão, é surpreendido pelo zelador (usando um artifício recorrente em seus filmes, que é usar a profundidade de campo para dar a informação que “alguém está vindo – há plano similar em Parasita, quando o pai Kim aparece ao fundo na escada rolante). Precisa se esconder no armário, onde testemunha o zelador preparar o cachorro refeição. Acontece que um amigo do zelador também chega ao lugar, e novamente, como em Memórias de um Assassino, temos duas ironias dramáticas (quando sabemos algo que um personagem sabe mas um outro não sabe) em andamento: Yun-ju vê a cena sem ser visto (apesar de ter sido ouvido, mas não checado), e sabemos que o zelador sabe do possível intruso no armário, assim como sabemos do paradeiro do cachorro escondido, algo que o amigo não sabe (mas Yun-ju sabe).

Ver e não ser visto (mas posteriormente ser ouvido) em Cão Que Ladra Não Morde (2000)

Ainda no meio da cena acima, o zelador, ao receber o amigo, age falsamente empático, dando sorrisos amarelos. É muito parecido com a maneira que a antiga governanta tenta convencer a nova governanta em Parasita, com sorrisos falsos, até tal máscara não ser mais necessária. Quando Ki-Woo joga os pelos de pêssego na governanta pela primeira vez, ele dá um sorriso exageradamente largo.

Essa cena de Cão Que Ladra Não Morde se estende longamente de maneira quase irônica, para manter o suspense. Em Memórias de um Assassino, há uma cena disfuncional em que a narrativa engatinha, quase parece empacar, que é quando o investigador local tenta explicar detalhes dos ocorridos ao seu chefe. Os planos e as reações demoram muito mais que deveria: Bong faz de um ritmo maçante uma brincadeira de linguagem. Para uma cena tediosa, um ritmo igualmente tedioso.

Memórias de um Assassino (2003) e Mother – Em Busca da Verdade (2009)

Diferentemente àquele tudo mostrar de Cão Que Ladra Não Morde, Memórias de um Assassino (2003) e Mother – Em Busca da Verdade (2009) são filmes onde os detalhes do(s) crime(s) principal(is) são incógnitas, as motivações inexistentes, e tanto o espectador quanto os personagens estão sempre um passo atrás de esclarecer os fatos. O subtítulo brasileiro ‘Em Busca da Verdade’ poderia ser um título alternativo para o Memórias de um Assassino, com o detalhe que a noção de verdade difere entre os investigadores. Para o investigador local, a verdade é encontrada se o caso se encerra, independente se corresponda aos fatos ou se é uma verdade fabricada, tirada à força das confissões[5]. Para o investigador de Seul, a verdade é conseguida quando os fatos ocorridos coincidam com o resultado do caso, quando todas as dúvidas são sanadas. O fato do crime ter pistas que sempre levam a becos sem saída impossibilita isso. Aí se dão as mudanças dos personagens:  tal impossibilidade leva o investigador de Seul a excessos de raiva (algo irracional, o contrário da sua personalidade metódica que dizia: “para tudo há uma solução”) e por fim a um desespero existencial; enquanto o investigador local, antes desleixado, começa a tentar pensar hipóteses sobre o ocorrido, mesmo que sejam hipóteses esdrúxulas.

O fato dos personagens não saberem com precisão se tais atos praticados ou a praticar são crimes é a uma recorrência explícita que cabe ao diálogo sublinhar em 3 filmes: Cão Que Ladra Não Morde, Memórias de um Assassino e Parasita (com a diferença que a dúvida é respondida em Parasita):

“Você pode ser preso por pagar subornos, também?”, em Cão Que Ladra Não Morde (2000)

Pergunta de um possível suspeito Memórias de um Assassino (2003)

Parasita (2019)

Esse dúvida prosseguiria no filme Mother como: seguir uma mulher é um crime? Enquanto o crime não tem seu desenrolar dos acontecimentos claro, nem o espectador nem os personagens têm ideia do ocorrido, já que as reencenações são sempre versões, mais subjetivas que factuais. Mesmo o acusado tem dificuldade para saber do que foi acusado: em um momento pensa ter sido por ter quebrado um retrovisor. Essa debilidade intelectual para entender o ocorrido é semelhante ao primeiro acusado de Memórias de um Assassino, com problemas de cognição.

Em Mother, Bong faz malabares com a noção de falso culpado. A semelhança com Hitchcock não para por aí, sabemos que Bong fez sozinho os storyboards (muito detalhados) de Memórias de um Assassino e de Parasita – em Expresso do Amanhã e Okja, filmes de maior orçamento, consequentemente mais complexos, os storyboards foram feitos com ajuda de um artista – ou seja, Bong sempre soube de antemão e minuciosamente cada ângulo, movimento de câmera e dos atores. Por fim, após os desfechos das cenas e sequências de Mother, acaba não sendo de tanta importância quem foi, e mais como os personagens lidaram com as provações (em Memórias de um Assassino, o “quem foi” é sempre irrastreável). Assim, os eventos são como séries de MacGuffin, que embora tenham importância pontual, logo são descartadas e volta-se à estaca zero.

Há em Mother uma cena com o tema de desigualdade social bem evidente: quando recebe uma visita em sua loja de uma mulher bem vestida (de outra classe), a mãe é ameaçada ser dedurada por exercer acupuntura sem licença (parecido com os papéis forjados em Parasita). Essa diferença de classe é o que motiva tal repreensão, a mulher rica está sobre o controle da situação e pode decidir o destino da mãe.

As pistas falsas de encenação também são recorrentes. No decorrer de Memórias de um Assassino, os investigadores apenas imaginam como podem ter ocorrido os crimes. Eis que num momento, há uma espécie imagem-clichê da vítima como criatura indefesa, vestida em vermelho (uma das pistas), sozinha numa noite escura, uma vista quase surreal, pois fantasiosa e artificial demais, fazendo o espectador duvidar da própria ficção do filme, como sendo por demais óbvia. Logo depois, vemos que tal cena era apenas uma encenação, e que Bong estava brincando com expectativas, lançando sugestões para depois abandoná-las.

Memórias de um Assassino: após os investigadores imaginarem os detalhes do crime, há uma cena em que um possível crime acontecerá. Expectativa dada, expectativa desfeita: era apenas uma encenação.

Para além dos jogos de linguagem e de expectativas (cumpridas ou não), o absurdo de Memórias de um Assassino se dá quando, nesse universo cheio de possíveis coincidências e relações entre os fatos, nenhuma dessas coincidências levam a quaisquer conclusões. O fato de saber que um rapaz pede a mesma música em todas as noites de crime, não significa que ele os cometeu. Um tarado que também usa peças íntimas (objetos das cenas do crime) em suas taras não, apesar da coincidência, não terá nenhuma relação. Não à toa, tal universo incerto e sem sentido faz levar à loucura.

Memórias de um Assassino: no plano final, se falasse o que estava pensando, seria algo como: “Há algum detalhe que eu não notei? Você, espectador, notou? Poderia me ajudar?” ou “Percebe o nível de absurdo de tudo que aconteceu? Como sair desse labirinto sem saída (solucionar um caso impossível) em que estou envolvido?”. O plano final de Parasita também é um olhar para a câmera.

O Hospedeiro (2006)

Uma cena em especial é digna de nota: quando recebe uma ajuda de um médico americano, o pai é tratado com atenção, olhado nos olhos, como se fosse realmente ser ajudado. Logo se vê que o médico estava apenas verificando sua sanidade e planeja cortar sua cabeça(!). O que parecia ser, não era, Bong sugere um caminho mas logo o descarta (com fina ironia e humor macabro).

Diferente dos filmes abaixo, também grandes em escala, O Hospedeiro equilibra bem cenas mais complexas, com muitos figurantes, no início e fim do filme, com cenas mais enxutas, com apenas os elementos precisos nos enquadramentos. O filme não depende tanto do seu lado espetáculo, o que não será verdade em Expresso do Amanhã e Okja.

Expresso do Amanhã (2013) e Okja (2017)

Seus dois filmes maiores e internacionais são também os que foram necessários cumprir exigências comerciais, principalmente em Expresso do Amanhã (a ler nesse artigo) e de produção, no caso, exigências de grandes produções. Como é maior em escala, Okja, seu maior orçamento [6] também precisa ser um filme de cenários virtuosos, mais efeitos [7], enfim, precisa fazer ver e valer o que foi investido. Paradoxalmente, acaba sendo um filme ‘menor’ que seus filmes mais amarrados e que se debruçam sempre no essencial da trama (que por vezes escapa), com mais ou menos adornos. E como diz Bong (na citação logo abaixo), nessas ocasiões, a energia para construir a encenação se dispersa. Assim, vamos desconsiderá-los de aproximações maiores com Parasita. Vale apenas dizer que em Expresso do Amanhã, ascender socialmente também é mudar de lugar (dominar a frente do vagão e assim o trem), como em Parasita, onde é possível desfrutar brevemente a riqueza da casa dos Park (o outro lugar), mas como é deixado muito claro, nunca a possuir.

Uma similaridade entre Expresso do Amanhã e Parasita é que os vagões traseiros são como porões, lugares sem sol. Apenas aos 35 minutos do filme, num vagão mais à frente, é que esses trabalhadores verão o sol pela primeira vez. A luz causa uma breve cegueira (por excesso de luz) idêntica ao morador do porão de Parasita, ao ver o sol após mais de 4 anos.

Ver o sol após muito tempo em Expresso do Amanhã

Ver o sol após muito tempo em Parasita

Expresso do Amanhã é similar a um passeio por espécies de instalações artísticas (os cenários como ‘instalações cinematográficas’, se permitida a aproximação), cada vagão surpreendendo pelo deslumbramento visual de novos mundos (os diversos vagões e suas funções: pista de dança, aquários, jardins, etc) que se descortinam.

Okja, é um filme que peca em sua ironia em excesso. Essa ironia é também uma indefinição no discurso, valendo-se de estereótipos e maniqueísmos: os rebeldes são violentos e risíveis (ao ponto de um dos integrantes não comer nada pois tudo têm química). É um discurso problemático em termos de negação ambiental, ao mostrar tais personagens como ridículos (e pouco ambíguos) Bong anda em paralelo com certa ridicularização (além de posse e apropriação dos conceitos sustentáveis pelas empresas) dos movimentos ambientais, o que é no mínimo um discurso perigoso.

Muito da energia de Okja é gasta simplesmente em como o animal-título Okja se movimenta realisticamente, em como os reflexos de luz iluminam (também realisticamente) seu corpo.

Se Nicole Brenez cita a trinca: They Live (John Carpenter, 1988), Tropas Estelares (Paul Verhoeven, 1997) e Batalha Real (Kinji Fukasaku, 2000) como filmes que sabotam o sistema por dentro (por terem críticas aguçadas que não foram muito bem entendidas em suas épocas, mas que permanecem atuais), podemos afirmar que Expresso do Amanhã e Okja não são filmes desse tipo, apesar de ter suas mensagens muito claras (talvez claras demais, diferente de Parasita). Quando usa uma ironia de certa linguagem publicitária, falsa (em Expresso do Amanhã a aula/armadilha; em Okja, a linguagem dos programas de TV) Bong não consegue criticá-la por dentro: em tais momentos o filme consegue mais é se confundir com tal linguagem, num sentido negativo.  Por outro lado, Parasita, pela repercussão que teve e pelo conteúdo denso e intrigante que propõe – mais faz perguntas que responde de maneira definitiva – certamente é um candidato para tal alinhamento com a trinca. É um filme que, ao receber tanta validação na ‘elite’ do cinema (seu aval: Cannes, Oscar), pode ser visto como o maior filme-cavalo-de-Tróia recente, pois critica justamente as engrenagens (conceito central em Expresso do Amanhã) de que tal sistema é relacionado (com suas competições implícitas, onde questões de mercado são determinantes), mostrando-o incurável e irresolúvel em sua essência.

 

Parte 2 – Em Parasita, ‘tudo’ é sobre as diferenças de classe

 “Você sabe como, quando você era pequeno, você usava uma lupa para reunir a luz do sol em um ponto e queimar um pedaço de papel?  Parasita foi como pegar a lente de uma câmera e reunir toda a minha concentração e focalizá-la em um ponto. Quando  a escala é realmente grande, um orçamento maior parece uma desvantagem. Sua energia se espalha.” Bong Joon Ho sobre Parasita [8]

Bong afirmou que as relações de parasitismo entre as famílias ocorrem em todas as direções, e não apenas das famílias pobres com as ricas: o casal Park poderia fazer os serviço de motorista e ‘dona de casa’, mas contratam (terceirizam) tais serviços. Esse contrato vem com certo sentimento de posse, e na desculpa de pagar os extras (como na festa) está implícito os possuírem a todo momento que quiserem.

Para usar termos biológicos, Parasita secreta, transpira informações nos diálogos, nas construções dos planos (ângulos, movimentos de câmera), nas ambientações: tudo parece querer falar sobre as desigualdades dessas famílias e como consequência, da desigualdade social no geral. Essa é a lupa que Bong fala.

Os primeiros diálogos deixam claro a dependência da família, precisam do wi-fi alheio para ganhar dinheiro, e mesmo conseguirem se manter nessa precariedade é motivo de comemoração (amarga e sempre interrompida). No plano em que recebem a visita da funcionária da pizzaria, a família aparece toda no quadro, mostrando essa união que Bong afirmou ser incomum com famílias com filhos já crescidos (a filha, que é a mais nova, tem 22 anos no filme).

Há informações em planos que não são explícitas, mas dizem muito sobre onde moram. Por exemplo: no início, quando ao filho é sugerido levantar o celular para ter sinal, vemos que os limites do corpo coincidem com os limites do espaço da casa. Eles vivem apinhados. A casa (o semi-porão, como sempre é ressaltado) estar abarrotada de objetos nos corredores reforça isso.

Parasita: os limites do corpo coincidem com os limites do espaço da casa da família Kim.

Ainda nessa sequência inicial, há uma gag que é intimamente relacionada a essa habitação precária. Ao receber a visita de Min, o pai se levanta da mesa para recebê-lo, e bate com a cabeça no armário. O que era pra ser apenas uma atividade (se levantar), se torna reveladora do espaço exíguo da casa.

Em alguns vídeos-ensaios [9] e críticas foram ressaltados como os movimentos de câmera para cima e para baixo (como no plano inicial e final do filme, quando a câmera precisa descer do nível da rua para chegar ao rosto do filho), assim como os movimentos de ascensão e descida dos personagens como sendo modos reveladores das posições sociais. Quando vai fazer a entrevista, o filho sobe uma série de ladeiras de rua. Quando a família retorna a sua casa na chuva, uma odisseia de sucessão de escadas acompanha o retorno. Metaforicamente, é como se fossem levados pelo fluxo da água. Isso reflete a insegurança existencial que sofrem, não tendo as necessidades mínimas de habitação supridas, o que os colocam na base da pirâmide social. Os exteriores das casas também são muito diferentes, e refletem os espaços livres [10] disponíveis nas casas: pouco na rua do semi-porão, muito na rua da mansão.

A rua da família Kim. Apinhada.

A rua da família Park, sem nenhum objeto que impeça a passagem. Com área verde e ampla.

Sugiro dividir Parasita em três partes. 1: o reconhecimento da situação precária e a conclusão da infiltração na casa Park; 2: os imprevistos (começando com a visita da antiga governanta) e a enchente: 3: o desfecho (a festa) e o prólogo. As partes 1 e 2 são, em termos de divisão das sequências, coladas, não havendo uma divisão clara (como um fade to black) entre elas. A visita da antiga governanta é como uma surpresa. Ao analisarmos essas partes veremos o quão conciso Parasita é.

A primeira parte é como uma grande sequência com diversas cenas, todas ligadas por elipses que removem todo o supérfluo. O primeiro fade to black do filme (efeito que tem como função de pontuação cinematográfica dar um fim a uma sequência) só se dará no fim da encenação criada pela família Kim para despedir a governanta. Ao ser mostrado o papel com sangue, a madame fecha os olhos e a tela escurece (aos 44 minutos). Ou seja, quase 1/3 do filme foi contado de maneira ininterrupta, em um só impulso, o que por si já é um feito e mostra a forma de tour de force constante que Parasita tenta e consegue ser, atingindo ápice nessa encenação, que é uma mistura de montage sequence com cena, pois a ação avança, mesmo com pequenas informações (e reiterações)[9]. Ademais, as cenas posteriores ganham outro caráter, de farsa, quando o pai Kim vai consolar a mãe Park, sabemos que todas as suas falas já foram encenadas. Segue-se o aproveitar da infiltração, desfrutar a casa, como prêmio. A cena em que a família bebe a mostra mais de perto, mostrando os diferentes graus de empatia que sentem com a família Park e para com iguais. A filha rejeita a compaixão que o pai tem com o antigo motorista (mostrando pouca empatia de classe social). Essa falta de empatia será o erro crasso da família Kim, quando a mãe não aceita os moradores do porão como iguais (por mais semelhanças que tenham), querendo ter o “privilégio do parasitismo” só para sua família. Ali um primeiro conjunto de máscaras caem, a antiga governanta, antes suplicante, logo se mostra cruel a sua maneira, no esforço de Bong a mostrar todos esses personagens como ambíguos. Na festa, a mãe mostrará compaixão, pedindo para a filha levar comida para eles no porão, mas ali já será tarde demais.

Há de se lembrar que mesmo os patrões são vistos como ambíguos: a madame retira parte do pagamento e diz que “pagou o mesmo preço do empregado anterior, corrigindo a inflação”. Mesmo ela, em sua ingenuidade, não é desprovida de malícia. O patrão, mesmo aceitando/suportando (é sua máscara) os Kim, não deixa de fazer comentários que deixam clara sua soberba: ao dizer que a antiga governanta comia por duas pessoas, está sendo cruel por algo que não lhe fará nenhuma diferença em sua riqueza. É sua forma de se distinguir dos empregados, com preconceito de classe. Posteriormente, se referirá as pessoas do metrô (toda classe média, pela analogia) possuem cheiros estranhos, no que a esposa faz um comentário inocente porém revelador: há 10 anos não anda de metrô – uma maneira de dizer que não se mistura com ‘tal tipo de gente’.

Quando o pai Kim tenta convencer o patrão a contratar sua esposa como governanta, adicionemos aos erros de ação/sentidos descritos no início desse texto o erro de atuação. É o momento em que Kim fica nervoso demais, não consegue ter naturalidade, fala gaguejando e com olhar assustado. É um momento em que sua máscara está prestes a cair (e a cruzar a linha do que é ser polido), em que todo o esforço até o momento está por um triz.

Nessas partes 1 e 2, o maior antagonista – de forma ingênua, risível, mas não menos cruel – é o filho Park, sempre ameaçando desmascarar a família Kim. Numa sugestão errada do enredo, o filho grita emergência quando pai Kim rasteja (essa ação do mundo animal certamente carrega significados) para fora da casa. Logo saberemos que ninguém o viu, numa variação: estar visível mas não ser percebido.

Uma recorrência com carga irônica são os pedidos da mãe Park de como cuidar os cachorros. Em Cão Que Ladra Não Morde, há um diálogo em que o zelador diz que há cachorros que vivem e comem melhor que ele. Em Parasita, a mãe é instruída a dar carne de ‘caranguejo japonês’’ ao cachorro especial. E vale também lembrar que tais cachorros são parte integrante da família, enquanto a família Kim não é. Em termos de espécie, ser um humano não garante empatia de iguais, esse é outro comentários sórdido. Quando aproveitam da casa, a família Kim não é nada mais que “invasores, criminosos”.

Na parte 3, numa cena de transição a princípio superficial, fica clara a posse da família Kim e a relação que elas mantêm. Quando precisa fazer as compras para a festa, a mãe Park está com o pai Kim como ajudante. Nesse momento, ele é apenas um cabide ambulante, sua presença não é notada. Diferente dos momentos em que a conversa entre eles é necessária, nesse momento do dia a dia é como se o pai Kim fosse invisível. É a relação de poder (tema central em seus filmes) parecida com a de Cão Que Ladra Não Morde, onde o estudante também precisa carregar compras para a mulher que o sustenta.

No pandemônio final, o surpreendente é que, embora a história siga diversas linhas, nenhuma indicava tamanho caos. Bong parece dizer: olhe para tais relações de classe injustas e tire suas conclusões, pergunte-se se tanta violência velada e concentrada (as humilhações que destroem o caráter), não poderia findar nisso? Essa parte da casa, o porão, como um tumor (ou melhor, como um parasita), uma hora iria se manifestar. Tal desequilíbrio (da desigualdade), em que se vive bem (mansão), mais ou menos bem (semi-porão), ou se (sobre)vive mal (porão da mansão), indignamente, nem vendo a luz do sol, como uma prisão, é impossível de se manter, precisando implodir em algum momento. Tal desiquilíbrio, de maneira metafórica, é o que acaba por matar o hospedeiro (que pode ser lido como a família mais essa casa de recursos infinitos).

O trágico do final, segundo Bong, é que a família Kim, sempre unida, é forçada a se separar (para além da morte da filha). No prólogo, ocorre a segunda quebra de registro do filme (a primeira é quando aparece o bolo de aniversário no chão, numa cena que mistura relato e flashback). Numa cena que mescla sonho com vontade de ascensão social, o filho fantasia ser rico e viver bem com o que sobrou da sua família na mansão. Há ali um diálogo que é idêntico ao de O Hospedeiro: naquele filme, quando o pai diz ter recebido uma ligação da filha e pede para o policial rastrear, ele diz: “não fazemos isso para qualquer pessoa”, no caso, a família sendo as tais quaisquer pessoas, ordinárias, comuns. Quando vai entrar na casa, a corretora diz: “não mostramos essa casa para qualquer pessoa”, sendo que o filho, nesse sonho, adquiriu certa riqueza econômica, estando numa posição acima das quaisquer pessoas. Bong também afirmou que terminar o filme dessa maneira (logo após tal cena esperançosa) seria iludir o espectador, que sempre saberá que seria um milagre impossível para a família Kim ascender a tal posição. Se em Expresso do Amanhã há alguma esperança ao se dizer “melhor sistema nenhum do que um sistema injusto”, Parasita, diz: “esse sistema terrível continua, e veja o quanto é parecido com o mundo que vivemos”.

 

Considerações:

Por mais descritivo que seja esse texto (em sua obviedade de explicar imagens por vezes explícitas), ele teve o intuito de servir de pequeno guia sobre a obra de Bong, tratando as recorrências e variações em seus filmes ora seguindo caminhos lógicos, ora caminhos reincidentes e/ou de ruptura, sendo Parasita um filme de ruptura com os dois filmes anteriores, mesmo retrabalhando muitos de seus procedimentos. Parasita é filme que, como é sugerido aqui (e pelo próprio diretor) é extremamente enxuto, onde cabe apenas o essencial. Parasita possui apenas 5 fades to black: um aos 44 minutos (no fim da encenação da tuberculose), um dentro da parte 2 (uma elipse depois dos patrões terem cochilado), um ao fim da parte 2 (o fim da festa) e dois no prólogo (um no fim da cena-sonho em que a família Kim possui a casa), e o fade to black final. Isso reflete o vontade de sempre estar atrelado fielmente ao primordial da trama, sem respiros possíveis. Aonde filmes anteriores tinha liberdade para ser apenas (e somente) visualmente interessante (como pelo virtuosismo do cenário em Expresso do Amanhã), em Parasita essa necessidade é abolida.

 

Notas

[1] há outras recorrências de menor importância, como as piadas com os EUA (sempre remetendo a uma superioridade e domínio cultural americano; os movimentos rebeldes em Snowpiercer , Okja, e Hospedeiro. Por carecerem de maior base, sendo mais elementos de roteiro que componentes centrais, um aprofundamento maior foi evitado.

[2] Bong Joon Ho em https://www.youtube.com/watch?v=Rv_DzVn6CcM. Tradução minha.

[3] sobre o cheiro, Bong relembra dos tempos de escola quando todos os dias haviam confrontos com a polícia. Esse lado biográfico tem influência em Bong para adicionar esses elementos em seus filmes, sendo um componente central em Parasita:  a barreira de classe nunca será quebrada pois o (mal) cheiro é parte integrante da família Kim. A ler em https://www.vulture.com/2019/10/bong-joon-ho-parasite.html

[4] a fumaça é elemento recorrente em seus filmes. Em Parasita, é a dedetização grátis no início.

[5] o componente político dessa cena está em mostrar o período escuro que a Coréia do Sul viveu, ao mostrar esse porão de lugar de tortura, remetendo a um regime autoritário e violento. Esse contexto é explicado no artigo ‘De volta para o futuro: a nova era do cinema sul-coreano,’ de Luiz Carlos Oliveira Júnior, no livro ‘Cinema Mundial Contemporâneo’.

[6] Okja teve um orçamento de 57 milhões de dólares, Expresso do Amanhã, quase 40 milhões de dólares. Como comparação, Memórias de um Assassino: quase 3 milhões de dólares. Mother: 5 milhões de dólares. Parasita: 11,5 milhões de dólares.

[7] sobre os efeitos de Parasita, Bong lembra que mais de 400 planos do filme possuem algum tipo de efeito, a maioria, possivelmente nos vidros da mansão. A rua da família Kim, por exemplo, é parte cenário,  parte construção digital. Ou seja, mesmo que não pareça, Parasita também conta com muitos efeitos, mas não saltam à vista como nos 2 filmes anteriores. O diretor mostra alguns desses efeitos aqui: https://www.youtube.com/watch?v=bP-eqx2X9AY

[8] também em https://www.vulture.com/2019/10/bong-joon-ho-parasite.html

[9] alguns desses vídeos ensaios pecam pela sua super-interpretação, ao afirmarem que certos usos de linguagem correspondem, sem margem de dúvidas, a intenções do realizador. Sobre essas suposições, vale lembrar o alerta que fazem Jacques Aumont e Michel Marie no livro ‘A Análise do Filme’, quando afirmam: “nos opomos a qualquer leitura de um filme – analítica ou não – que assente em supostas “intenções” do autor; mesmo supondo que essas intenções tenham sido perfeitamente claras e explícitas para o próprio cineasta (o que é raro), nada garante que o filme corresponda a essas intenções, que além disso o analista não pode ter a certeza de conhecer.”

Um exemplo de super-interpretação se dá em vídeo-ensaios que tratam as linhas verticais do quadro como separadoras dos personagens, dividindo-os, rachando o quadro para os colocar  em seus devidos lugares sociais. Se em enquadramento essa sugestão é mais explícita, e pode ter sido mesmo intenção, os vídeo-ensaistas esquecem quadros parecidos em que as relações da linha não se dá (podendo então ser contingente), ou não é clara, se tornando uma interpretação forçada.

Por exemplo, o enquadramento em que a linha no vidro separa empregados e patroa tem um equivalente em cena posterior, quando a governanta é demitida. Ali, a linha não as divide, mostrando que tal intenção do realizador não foi sempre (se foi realmente) consciente. Pois nessa situação, patroa e empregada estão mais separadas que antes, pois quebrou-se o vínculo empregatício, mas como iremos saber, não o vínculo parasitário (daquela família em relação aos patrões e à casa).

Outros quadros mostra mas linhas dividindo os personagens, mas há outras informações no enquadramento que fossem mais essenciais: por exemplo, nesse quadro abaixo, um elemento importante é a profundidade da casa, dando a ideia de espaço amplo, mais que esse elemento de possível separação das situações sociais por uma linha. É quando os analistas querem ver a intenção onde possivelmente não existe para provarem seus conceitos sobre as intenções.

[10] há um diálogo em Expresso do Amanhã que relaciona espaço livre e riqueza. Quando o protagonista Curtis chega à frente do trem, ironiza os lamentos de Wilford sobre ser difícil morar na frente pelo barulho e solidão, dizendo “Steaks, plenty of room(…)”. O espaço vazio disponível é sinal de superioridade de classe, como em Parasita.

Adendo: as rimas visuais que Bong usa em Parasita ressignificam planos idênticos ou similares:

As diferenças de classe mostrada pelos objetos: empresário do ano (vencedor) x medalha de prata (quase uma vencedora, não que isso fosse lhe dar status social de rica). Em O Hospedeiro, a filha é medalhista de bronze. Na enchente, tal quadro inundado tem um quê de “naufrágio social”.

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O molho, posteriormente ressignificado.

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A xícara, posteriormente ressignificada: isso não é um teste (o fingimento) x isso foi um teste (a verdade).

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A câmera de segurança que retorna ao fim: serve para dois ocultamentos, da antiga governanta e do pai Kim.

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