Críticas de Cinema

Notas sobre o filme ‘Açucena’ (Isaac Donato, 2021)

 

O fato dos (des)enquadramentos deixarem os personagens em segundo plano, certa distância (por vezes as pessoas são um elemento no quadro, não necessariamente o principal) é um problema gravíssimo. Isso passou despercebido em 4 dos 5 primeiros textos que li sobre o filme, assim, fiquei com a impressão que estavam vendo um filme diferente do que vi.

Esse é um aspecto essencial, essa distância não ser sempre uma distância justa (entre câmera e pessoas). Para um filme que claramente está preocupado com os enquadramentos, é sintomático que certos enquadramentos não priorizem as pessoas em frente ao quadro: o segundo plano é um monocromático em que quase não se vê nada, e o terceiro é um sem foco de uma bandeirola. Parece que a intenção, já de início, é sempre tergiversar e tangenciar tal universo, nunca mergulhar nele, pelo menos é o que os enquadramentos dizem; há um plano conjunto da senhora, no meio da cozinha, em que ela está fora de foco; há um plano da senhora em frente à casa em que seu rosto está obstruído por um objeto, não lembro se o portão, o muro; num longo plano onde há um espelho, a direção do olhar não é respeitada, é dada pelos reflexos, quando acho que ali, tal conversa franca, era essencial manter a direção do olhar; há um corte em que há um grupo de pessoas no quadro, e de supetão, corta-se para a frente da casa (um artifício formal que poda a presença das pessoas). Onde é mais visível é o plano com as 2 bonecas no primeiro plano, dois borrões, no momento de mais afeto do filme (Açucena e suas bonecas em momento íntimo), ela está no fundo, é apenas um dado do quadro (aquele plano se beneficiaria levemente numa tela grande). No plano do reflexo do microondas a presença é só um dado, e em diversos outros se corta a pessoa na borda da imagem, etc. (nesses casos, era bom ter screenshots para ilustrar melhor, algo que eu ia fazer).

Fico com a impressão que a grande maioria dos planos incorrem nesses erros.

E aqui, não é o caso de invocar as regras de Straub-Huillet, para quem a câmera sempre tem que estar no lugar exato, até porque constataríamos que na maioria das vezes, em Açucena, ela não está (no lugar correto).

Lembro de outro documentário, Modo de Produção (Dea Ferraz, 2017), em que há diversos closes de pessoas em situação degradante, brigando por direitos sem sucesso, em um desnível de forças quase humilhante. Esses closes são anti-éticos pois não respeitam o sofrimento, pelo contrário, tentam usá-lo para fim de ‘impacto’ (emocional na cena). Em Açucena, vejo o contrário, há sempre distância demais.

Eu precisaria ter revisto, não consegui, mas lembro que só nos 10 minutos se tem um plano decente nesse sentido, onde as duas (a costureira e uma amiga) conversa e o ângulo valoriza seus rostos e a posição dos seus corpos em relação à câmera.

Eu entendo que para um universo incomum e bizarro, seria coerente ter uma encenação também incomum, só que essa escolha não vem sem preço: onde notaram nesse distanciamento um zelo, vi indiferença, uma aproximação fria, ‘oblíqua’ (como disse o Carlos Alberto Mattos). Não é pedir por uma estrutura normal, mas dizer que quando se escolhe uma outra abordagem, ela também precisa ser humanamente justificada. Pois é evidente que há muito material humano no filme, mas a abordagem nunca tenta reforçá-la, pelo contrário, é um olhar sempre desviado. Se tal incompletude tem suas vantagens, as desvantagens parecem sabotar mais o filme. Sentia-me até com certa pena das pessoas, por terem um olhar que desviava tanto delas. Pois elas estavam se abrindo, permitindo o acesso a elas, e era algo que a encenação não tentava (nem sob o risco de se aproximar demais), uma espécie de desperdício humano (com a força da expressão).

Sobre estrutura, Mattos diz que certo documentário brasileiro recente, que o denomina de invenção [1], terão novidades formais, e não é o caso de, dizer que Açucena ao se encaixar (parcialmente) nesse grupo, deveria seguir apenas regras de documentários tradicionais. Pois usar procedimentos, se o relaciona a certas propostas, não garantem nenhum relaxamento ao olhar a seus aspectos humanos (no um, no social, na relação dos dois, cumpridas em Açucena). E aqui dá para sugerir que diversos documentários recentes (mesmo que meu escopo pode ser pequeno, é sabido que muitos documentários são feitos aqui, mas em participação nas salas, sua contribuição é irrisória) se resolvem nos aspectos formais (são ‘modernos’) mas têm muitas falhas e falta de concisão nas abordagens (no painel que se quer traçar, no uso político que quer ter – o quanto o filme quer ‘rezar para convertidos’, numa expressão corrente). E isso excluindo os filmes que já são mal vistos por terem estruturas “nada inovativas”, como entrevistas, sendo que nesses casos o problema não é estrutura, mas no geral, conteúdo, pois é perfeitamente existir filmes de entrevistas excepcionais, Coutinho sempre nos lembrará disso (embora entrevista se misture com conversa/diálogos, em seu caso – o que sugere trocas mais justas- e aí residia grande parte de sua humanidade).

Por outro lado, acho que a sequência dos fatos e elipses de Açucena tem uma junção bem orgânica. Tal universo é bem criado, narrativamente, mas no geral, fico com a impressão que as prioridades foram: 1. o aspecto formal, os (des)enquadramentos. 2. a criação de tal universo (com excesso de não-dito), e por último 3. as pessoas/personagens (com a falta da criação de uma distância justa, algo que não é conseguido). E quando falo de distância, está incluso a escolha dos ângulos: no geral, quanto menos frontal, menos humano (pois se desvia do essencial).

Também não tenho dúvida que o diretor tivesse apreço por seu material, mas a forma com que cria e costura, como me chegou, diz exatamente o contrário. Essa falta de frontalidade se torna falta de confrontamento, embate.  Se por vezes é o que faz conseguir capturar a intimidade (o que dá para relacionar com certos programas de “câmera escondida”, num mal sentido, do que eles tem de privacidade atacada), há sempre como se perguntar como se dá tal captura. No caso de Açucena, por tendencioso que eu seja nesse texto, confesso não teria a resposta, mas deixo a pergunta.

Li um comentário relacionando o filme a certo terror (o plano rosa no início relata a isso), e achei algo vago, pois terror também sugere algo ameaçador, o que não é bem o caso aqui (embora exista algo de patológico). Mistério e suspense, algo que falta (uma razão de sentido maior para aquela tara ficcional da personagem-título, e o suporte da comunidade em também aderir a algo inexplicável) e algo (indefinido e por fim inexistente, em Açucena) porvir, fazem muito sentido nesse filme, certamente são duas das suas maiores forças. Interessante que cria outras narrativas, como a menina que supõe mesmo existir a tal menina de 7 anos. E não que ela não exista, pois ela é o que dá liga, na construção do filme, à comunidade. Açucena (a personagem) materializa a de 7 anos, se torna um duplo, em que uma chave (mental e de fé) ativa seu modo criança.

Assim, todas as complexidades do filme, pelo que penso de documentário, não compensam a falta uma aproximação justa. O fato de valorizarem (parte da recepção crítica) a construção de tal universo em detrimento do modo dessa aproximação, me parece sempre uma abordagem incompleta, insuficiente. Do mesmo modo que não citar a importância dos laços dessa comunidade, ponto forte do filme, também seja míope de minha parte.

 

Notas

[1] Filme Cultura 54, maio de 2011. http://revista.cultura.gov.br/item/filme-cultura-n-54/
“O doc de invenção utiliza modelos narrativos menos convencionais, toma liberdades poéticas em maior grau e adota formas subjetivas de representação. Em sua linguagem, incorpora técni-cas antes mais associadas à ficção, como efeitos digitais, imagens incrustadas ou sobrepostas, alterações do ritmo natural, congelamentos, trilha sonora assumidamente não diegética, planos subjetivos, descontinuidades. Em última instância, aproxima-se tanto da ficção quanto do cinema experimental, mas destes se difere basicamente por voltar-se para objetos reais do mundo social. Essa âncora com o real é o que ainda os caracteriza como documentários.”

Sobre a recepção:

Logo depois vi textos que trataram do tema, como o do Roberto Cotta:

“Diante de um universo tão fabuloso/fabular, desafiar o tempo é fundamental. E seria injusto dizer que esse desafio não acontece, tendo o espectador olhos alvoroçados como os de uma lebre. Mas a sensação é que a câmera distante, imóvel, quase sempre de soslaio acomoda mais que desafia. Sinto que Guiomar tem muito a dizer não só sobre a Açucena de todo dia, mas sobre a anunciação de toda hora. Ela convida o filme a participar de sua vida, mas este prefere manter-se cauteloso.”

e do Fábio Andrade:

“É um material humano excepcional, a ponto de os próprios cineastas parecerem por demais enamorados com essas descobertas para ousarem levá-las para qualquer outro lugar. Uma vez que a geografia física e sensível do filme é delineada, Açucena oferece diversos filmes latentes – sobre estes personagens, estas bonecas, estes ritos… sobre as intersecções políticas, místicas e culturais entre o cinema (com todo o seu histórico colonial) e o subdesenvolvimento – que ele se nega a explorar, optando por apenas ficar naquele mesmo lugar, com a câmera em uma distância segura, se negando terminantemente a igualar o investimento que seus personagens têm em um mundo simbólico. Paralisado pelo medo do próprio potencial do cinema em honrar a complexidade daquele mundo físico e místico, o filme termina por drenar seus personagens e situações, dissolvendo a densidade das soluções que eles encontraram para sua própria existência na artificialidade de um presente etnográfico que é, ao mesmo tempo, cuja frieza é ao mesmo tempo excessiva e insuficiente, como se as bonecas fossem, de fato, apenas bonecas.”

Bruno Carmelo sugeriu que essa distância significa o realizador não participar do jogo. Por resumida que seja, essa é uma percepção muito próxima da que tenho.

Por outro lado, Julia Noá usou tal distância para validar o filme: “Recortadas pelas paredes e portas da casa, as mulheres são de interesse de uma câmera fugidia em relação aos seus objetos, que, por sua vez, parecem bastante alheios às imagens captadas de si mesmos. Há um distanciamento imperscrutável entre nós, a câmera e aquele universo insólito que não acena a qualquer gesto autoexplicativo. A liturgia, tanto fílmica quanto diegética, não se revela para à espectadora não-iniciada, ao público branco-ocidental.”, seu valor é mais por não seguir uma norma transparente, por fugir do convencional. Nessa linha, poderia-se afirmar que 99% dos filmes experimentais seriam auto-validados pelos mesmos motivos. Também acho que estarem “alheios” não vem sem questões éticas.

O comentário que cito é um do Filipe Furtado: “Good character, very patient rendered. It exists in a place between the good natured humanism of current film festival portrit documentaries and the inherent creepness of the pathology of its scenario. It is much better when the it just assume that it uses the main character from what it can craft arounder her, the very best scene here shows the old woman playing with dolls as the camera remain removed from between two other dolls framed like it comes from a horror movie. Those moments are very good, but they come and goesas the film needs to find some more tastesful restrained.”. Aqui eu teria que discordar sobre o “good natured humanism”.

E outro texto que senti não tocar as questões citadas acima foi do Marcelo Ikeda (ou se aproximar delas apenas para também validar o filme), embora tenhamos aproximações parecidas quanto ao andamento do filme. Aqui, não consigo concordar com o trecho: “Donato utiliza esses recursos não meramente para diluí-los, ou seja, não como mero recurso de estilo ou apetrecho para se inserir numa grife autoral, mas claramente por compreender que esse “método” é o mais adequado para nos fazer mais próximo da ambiência buscada para o filme.”.  E em “O estilo de Açucena não aponta somente para si mesmo mas para o mundo.”, se o estilo aponta para algo além de si, essa visão não é de longo alcance (nem à distância de metros). Quando trata de afeto, parece quase um devaneio, E quando tenta afastar o filme de certo tom de ‘novo’, esquece que possivelmente em Açucena, seja seu maior apelo: certo modo não convencional, além da sugestão do universo. Sugestões, pois deixar muito em aberto não acrescenta na matéria do filme, transfere para o espectador suscitar algo que está (fracamente) latente ali. Sua ênfase numa certa Ética também carece de maiores explicações.

O texto de justificativa do festival falou em “partilha de sensibilidades”. Seria afirmar que quem mostra e quem é mostrado tem graus de exposição similares, o que não chega perto de ser o caso em Açucena.

Por fim, acredito que não há uma leitura ‘certa’, elogiosa ou não. Apenas sugerir que a questão do quanto tal forma (do filme) rejeita maior aproximação, pode ser levada em conta (como foi em textos citados).

Críticas (escritas entre 2016 a 2018) Aracati; Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois; Jovens Infelizes; A Noite Escura da Alma; Tropykaos; O Espelho; Santo Daime – O Império da Floresta; Nossa Irmã Mais Nova; Os Pensamentos que Outrora Tivemos; Os Incontestáveis; Baronesa; Lamparina da Aurora; Modo de Produção e Inaudito

Seguem as críticas que escrevi para o site janela.art.br nos últimos 3 anos, ainda não publicadas aqui. A maioria veio de cobertura do Festival de Tiradentes, 2016 e 2017.

Além dessas contribuições, Taxi Teerã (Jafar Panahi, 2015) e (Afternoon) – Tsai Ming-Liang (2015) se encontram aqui.

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