Entrevistas (Cinema)

Dialética Crítica: série de entrevistas (2021 a 2023) com críticos(as) de cinema brasileiros, por Euller Felix (Dialéticas da Imagem)

Mais recentes, acima.

Link: https://dialeticasdaimagem.com.br/tag/entrevista/

Dialética Crítica: Bernardo Oliveira

Dialética Crítica: Sérgio Alpendre

Dialética Crítica: Luiz Soares Júnior

Dialética Crítica: Bruno Carmelo

Dialética Crítica: Humberto Silva

Dialética Crítica: Eduardo Valente

Dialética Crítica: Francis Vogner dos Reis

Dialética Crítica: Luiz Joaquim

Dialética Crítica: Maria Caú

Dialética Crítica: Juliano Gomes

Dialética Crítica: Renato Silveira

Dialética Crítica: Celso Sabadin

Dialética Crítica: Pedro Butcher

Dialética Crítica: Arthur Gadelha

Dialética Crítica: Beatriz Saldanha

Dialética Crítica: Ruy Gardnier

Dialética Crítica: Inácio Araújo

Dialética Crítica: Ivonete Pinto

Dialética Crítica: Filippo Pitanga

Dialética Crítica: José Geraldo Couto

Dialética Crítica: Marcelo Lyra

Última atualização: 18/11/2023

Entrevista com Lucrecia Martel (em espanhol)

Link: https://www.lacapitalmdp.com/lucrecia-martel-estamos-produciendo-imagenes-y-sonido-para-un-vacio-incomprensible/

Texto de apresentação:

Por Hugo F. Sánchez – Télam

Lucrecia Martel, directora de películas ineludibles del cine argentino como “La ciénaga”, “La niña santa” y “Zama”, recibirá el lunes el Doctorado Honoris Causa de la Universidad de Buenos Aires (UBA), en el marco de la primera edición del Festival Internacional de Cine de la UBA, que se desarrollará del 25 al 30 de julio.

“Hay una necesidad de esa palabra que se usa ahora que es ‘contenido’, algo que excede la capacidad humana de consumo y de reflexión”, dice Martel a Télam en su casa del barrio porteño de Palermo, y apunta que “entonces estamos produciendo imágenes y sonido para un vacío incomprensible”.

La realizadora salteña, considerada una de las cineastas más influyentes de la historia del cine según una encuesta del medio especializado SlashFilm, habló sobre el prestigio, las series, qué significó formar parte del llamado Nuevo Cine Argentino que surgió a fines de los noventa, su falta de prejuicios sobre posibles convocatorias desde Hollywood (siempre que el proyecto le interese, aclara) y el interés de la actriz estadounidense Cate Blanchett por trabajar bajo sus órdenes.

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Crítica e Curadoria em Cinema – Múltiplas Abordagens (Organizador: Laécio Ricardo de Aquino Rodrigues) 2023

https://seloppgcomufmg.com.br/wp-content/uploads/2023/06/Critica-e-curadoria-no-cinema-Selo-PPGCOM-UFMG.pdf

PDF, 376 páginas

O livro busca contribuir, de forma contundente e inédita, para o debate em torno de dois ofícios no âmbito cinematográfico e alguns dos seus dilemas contemporâneos: a crítica e a curadoria. A escassez de textos recentes em língua portuguesa foi a principal motivação para a organização do volume, que desponta com a proposta de concentrar reflexões em torno dos dois temas, possibilitando certo aprofundamento, mas sem perder de vista o viés didático. Assim, a proposta tem como objetivo congregar uma diversidade e heterogeneidade de vozes em torno das atividades investigadas, sem visar esgotamentos.

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Entrevista com Raúl Ruiz (2000) – Tradução: Eduardo Savella (via Coletivo Atalante)

por Michel Coulombe

Raúl Ruiz é exceção na paisagem cinematográfica francesa. Exilado desde o golpe de Estado chileno, o cineasta, que filma mais rápido que a sombra, realizou, desde seus começos, nos anos 60, mais de 60 longas-metragens e inúmeros curtas-metragens. Longe, aos 60 anos, de afrouxar o ritmo, conseguiu este ano uma admirável dobradinha ao apresentar, um em seguida do outro, dois filmes em competição em Veneza e em Montreal. Enquanto os cinéfilos que assistiam à Mostra puderam ver Comédia da Inocência, interpretado por Isabelle Huppert e Charles Berling, no Festival des films du Monde descobríamos Combate do Amor em Sonho, drama amoroso mascarado por um emaranhado de histórias, justificado por uma combinatória surpreendente.
Mergulhando o espectador num universo que escapa às convenções realistas a aos códigos cinematográficos tradicionais, Ruiz empresta do Filme de Piratas – ele que se diz convencido de que todo chileno sonhou um dia em ser pirata – tanto quanto do conto de fadas, Hans Christian Andersen, nomeadamente. Aqui ele conjura um bordel de religiosas, bolsas sempre cheias de dinheiro, ou evoca de passagem o poder maléfico da internet. Em torno dos atores Elsa Zylberstein, Lambert Wilson, Melvil Poupaud, Christian Vadim e Marie-France Pisier, o cineasta propõe um filme cerrado, atípico, desconcertante ou intrigante, que encontra notavelmente suas origens num livro que ele estudou na escola, o Libro de Buen Amor, longo poema lírico escrito no século XIV por um cônego espanhol, Juan Ruiz.
Mas, em Raúl Ruiz, que tem prazer em desmontar leituras e interpretações, não há jamais uma verdade apenas. O espectador que se perder poderá sempre se debater com uma certa questão proposta por um dos personagens de Combate de Amor em Sonho: se esta história não quer dizer nada, porque contá-la?

 
Ciné-Bulles: Você filma num ritmo frenético.
Ruiz: E no entanto, tal ritmo me parece completamente normal.
Ciné: Você foi comparado a uma mãe siciliana que teria muitos filhos pois sabe que perderá vários. Logo, você tem essa consciência da fragilidade de seu cinema.
Ruiz: Em certa época, muita gente pensava assim. A grande produção musical italiana encontra sua explicação nesta convicção de que a maior parte do que foi feito vai desaparecer. Alguns de meus filmes desapareceram pois o negativo foi destruído, e deles não resta mais que algumas cópias em vídeo. Os negativos foram queimados por acidente ou por simples mal-entendidos.
Ciné: Esta tomada de consciência não é recente pois você trabalha em tal ritmo desde sempre: você escreveu muitas peças de teatro antes de assinar muitos episódios de séries mexicanas e de filmar numerosos filmes, às vezes até seis num único ano.
Ruiz: Insisto, não é o que você pensa. Não me sinto nem um pouco estressado. Um festival me cansa mais que uma filmagem.
Ciné: No caso de Combate de Amor em Sonho, você escrevia à noite e filmava de dia.
Ruiz: Sim, mas conhecia bem os temas. Eu trabalhava a mecânica, fazia vir as coisas por combinação criando pontos entre os temas, que eram nove, distantes um do outro. O filme está a meio-termo do sonho e ainda assim submetido a uma rígida combinatória. Isto é o que na música se chama de sistema serial. Tal sistema permite a abertura, não se deve tomá-lo de maneira tão rigorosa, pois há o risco do resultado se aparentar a algo da Oulipo. O mecanismo terminaria assim por sobrepujar a matéria e isso dá no vazio. Numa palavra, à força de utilizar a combinatória, é o espírito das Mil e Uma Noites que se instala.
Ciné: Você possui uma abordagem bastante lúdica do cinema.
Ruiz: Como a maioria dos que praticam a arte do cinema.
Ciné: Você crê realmente que os realizadores de grandes produções americanas são animados por tal espírito?
Ruiz: Esses não praticam a arte do cinema, mas uma forma de arte aplicada. Antes deles, antes de todos os cineastas formados nas universidades, os Howard Hawks, os Samuel Fuller davam o jamais visto através do que víamos todos os dias.
Ciné: Porque você se coloca em tal situação extrema de não saber jamais, durante a filmagem, o que te espera no dia seguinte?
Ruiz: Na escola, preparava sempre as lições no último minuto. Este hábito permaneceu. O que é preciso, para filmar como filmo, é estar bem preparado, não especificamente para o filme, mas colecionando as possibilidades. Um pouco como os esportistas que se submetem a longas temporadas de treino para serem capazes de correr em tal ou tal competição onde tudo no fim se passa muito rápido. No cinema, mesmo quando nos preparamos longamente, mesmo quando o roteiro está escrito, muitas decisões se tomam no último minuto. Mesmo no caso dos filmes americanos tão bem planificados, como pude constatar ao seguir de perto algumas filmagens. Eu mesmo realizei um pequeno filme americano, The Golden Boat, e sei bem porque não quero mais filmar assim. O lado industrial não me convém. Para obter qualquer coisa no sistema americano é preciso ser realizador e produtor ao mesmo tempo, de modo que só se filma de cinco em cinco anos. Neste caso se é, forçosamente, um amador. Há alhures filmes onde todo o mundo é profissional, menos o diretor!
Podemos fazer filmes como um músico cria uma ópera e depois uma sonata. Não há vergonha em compor uma sonata. No cinema pode-se filmar um filme caro e depois um pequeno, o que não muda nada, a sério, a invenção. Quando filmei O Tempo Redescoberto, como temia passar por maus bocados – o que não foi o caso – o produtor, Paulo Branco, me prometeu, em troca, um filme no qual eu seria inteiramente livre, e esse filme foi Combate de Amor em Sonho. Agora, preparamos juntos uma adaptação do último romance de Salman Rushdie, O Chão que Ela Pisa, um projeto bastante pesado, custoso. E desta vez obtive dois filmes livres, o que quer dizer dois filmes que custam juntos no máximo três milhões de francos. Meus filmes não são, no conjunto, sucessos comerciais, mas respeito uma certa lógica econômica. Assim, gasto dois milhões de francos na filmagem se sei que o filme, vendido para tal distribuidor, para tal canal de TV, pode cobrir seus gastos.
Ciné: O que corresponde à lógica de produção, nomeadamente, de Éric Rohmer.
Ruiz: Absolutamente. Logo, é preciso preparar o filme mais livre, mais interessante dentro de tais limites.
Ciné: A você foi necessário encontrar uma família cinematográfica pronta a jogar o jogo, a investir tempo e talento em seus projetos.
Ruiz: Tenho três. Tendo visto o que aconteceu a Fassbinder, um cineasta com quem cruzava regularmente no mítico festival de Rotterdam, e que me parecia bastante infeliz, escolhi evitar as panelinhas. A gente com quem trabalho não depende portanto de mim.
Ciné: Deve-se entender que você convida tal ou tal ator lhes dizendo, sem mais, que os chama para um filme construido em torno de uma análise combinatória?
Ruiz: Isso mesmo, e ao conversar com os atores o filme toma forma. Durante a filmagem de Combate do Amor em Sonho eu me levantava por volta das quatro horas da manhã para escrever o que filmaríamos dois dias mais tarde. Dez dias antes do fim das filmagens, o roteiro estava completo. Não era preciso senão tapar os buracos. Um pouco como na nouvelle vague: Jacques Rivette trabalha ainda desta forma. No caso de A Sereia do Mississsipi, um filme no entanto bastante roteirizado, François Truffaut distribuia pela manhã as páginas que filmava ao meio-dia. Eu, sou um tanto mais prevenido… Monto o filme com minha esposa em paralelo à filmagem, o que me permite saber exatamente onde estou.
Ciné: Você tem sempre prazer em filmar?
Ruiz: Quando rodei meu filme americano, tive momentos de prazer, mas não o tempo todo. Normalmente, tenho mais prazer… No mais, para não perder a mão, filmo durante uma hora, todos os dias, com uma câmera digital. É necessário, de outra forma é como com o piano, esquece-se.
Ciné: Você vem de filmar em seu país de origem, o Chile.
Ruiz: Filmei dois documentários de uma hora e meia sobre o Chile. Uma visão um tanto subjetiva…
Ciné: Qual é sua relação com o Chile hoje em dia?
Ruiz: Tornou-se mais clara. Estive lá três vezes neste ano. Estou no momento bastante próximo do Chile, como, no mais, de Portugal e da França.
Ciné: Você apresentou também um filme em competição em Veneza, Comédia da Inocência. Estes dois filmes feitos um em seguida do outro possuem uma relação estreita?
Ruiz: Comédia da Inocência, mais inquietante, é o oposto total de Combate do Amor em Sonho. A história é contada do início ao fim contendo todos os elementos. Comédia da Inocência é um filme francês. O roteiro é tirado de um romance. No dia de seu aniversário de sete anos, uma criança declara que gostaria muito de voltar para casa. Ele dá um endereço à sua mãe, que encontra assim uma mulher que perdeu o filho num acidente. Essa criança teria a mesma idade que a sua. Imagino bem o que um americano poderia fazer com tal história. Quanto a mim, opto pelo cartesianismo francês, mas no fim das contas a explicação é mais inexplicável que se tivéssemos optado pelo fantástico e pelo expediente do sobrenatural.
Ciné: Depois de O Tempo Redescoberto, você filma, com Combate de Amor em Sonho, um filme que poderia tão bem se intitular O Tempo Compresso, na medida em que funde passado, presente e futuro, uma forma de contar que associamos naturalmente à América Latina.
Ruiz: Temos o hábito de misturar tudo… Quando se habita tais países fazemos associações que não ocorrem aos europeus. Ainda que hoje em dia, os europeus se abram a tal forma de contar, ao passo que os latino-americanos se tornam mais rígidos.
Ciné: Você vê uma transferência.
Ruiz: Entre a França e a América Latina, certamente. Mais que entre a Espanha e a América Latina. No mais, me sinto muito mais próximo da França que da Espanha, cuja cultura, entretanto, frequento desde a infância. Há qualquer coisa de desagradável, de pesado, de pés-no-chão, no mau sentido do termo, na Espanha. Há um pouco de Franco, um pouco do realismo espanhol, em todo Espanhol.
Ciné: A América Latina tem, também, seus ditadores. Há um pouco de Pinochet em todo chileno?
Ruiz: Pinochet é um caso a parte, diferente dos ditadores latino-americanos que conheceram a alegria, a embriaguez do poder, que possuíram um caráter grotesco. Pinochet está mais pra um pequeno funcionário. É um personagem de Camus. Em L’État de Siége há um personagem chamado Nada, vestido de sub-oficial… Pinochet não vivia no luxo. Ele matava de modo prático. Ele assustava. Três mil mortes no Chile, trinta mil na Argentina, isso é tudo sobre seu minimalismo. O Chile é um país infantilizado que viveu mais o regime dos maus tempos que o do terror. Quando lá retornei após dez anos de exílio, não fui contrariado, mas uma viatura me seguia e, toda noite, sistematicamente, às quatro da madrugada, batiam à porta. Sem mais.
Ciné: Em Combate de Amor em Sonho você demonstra uma fascinação evidente por certos objetos, o anel, a bússola, o espelho ,a lanterna, a esfera, a cruz de malta. Tais objetos possuem com frequência propriedades mágicas.
Ruiz: No filme há nove objetos, nove histórias, mas cada história não corresponde, necessariamente, a um objeto. Pedi a quem se encarregava do cenário e do figurino que me encontrasse objetos, se possível nove, e assim comecei a trabalhar sobre os mesmos. Nove é a cifra da cabala cristã, a renascença tardia, o barroco. Eu os escolhi por razões bastante cinematográficas.
Ciné: O mistério lhe agrada muito.
Ruiz: O trabalho no cinema consiste em filmar coisas completamente cotidianas que se tornam enigmáticas. E mais, o cinema é feito menos de histórias que de silêncios, de vazio. Como amo o mistério, em Combate do Amor em Sonho há um filme escondido. Um jovem, interpretado por Melvil Poupaud, encontra uma jovem numa boate. Eles partem juntos e sofrem um acidente. Em coma, o jovem ouve vozes a seu redor e pouco a pouco constroi qualquer coisa que o permite alcançar a morte. Ao longo de todo o filme, há indícios, sirenes, ruídos do acidente, o lamento de alguém que respira com dificuldade, vozes numa sala de operação. Eis o filme que se esconde por trás da análise combinatória de Combate de Amor em Sonho. Para descobrí-lo é preciso, evidentemente, escutar bem a banda sonora.

(Traduzido por Eduardo Savella)

Fonte: https://coletivoatalante.blogspot.com/2016/10/entrevista-com-raul-ruiz.html

Sobre a Cinemateca Brasileira – por Carlos Augusto Calil (FSP, 07/08/2021)

Foto: Paulo Emilio Salles Gomes na catedral de Notre Dame, em Paris, França, onde se exilou após a fuga do presídio do Paraíso, em 10 de fev. de 1937 (Arquivo da família)

CARLOS AUGUSTO CALIL

Um galpão da Cinemateca Brasileira, no bairro da Vila Leopoldina, em São Paulo, foi consumido pelo fogo em 29 de julho. Foi o quinto incêndio nessa instituição ao longo de sua história: 1957, 1969, 1982, 2016 e 2021.

Em 1957, o impacto foi enorme. O fogo destruiu o 13º andar do edifício da rua Sete de Abril, 230. As instalações da Cinemateca comportavam biblioteca, documentação, filmes brasileiros e clássicos do repertório estrangeiro, aparelhos antigos do Museu do Cinema. Um terço dos filmes se perdeu definitivamente. A violência do fogo que assustou bombeiros foi causada pela autocombustão dos filmes em suporte de nitrato de celulose, temidos pela sua inextinguibilidade.

Ciccillo Matarazzo, o patrono das artes plásticas, tinha abrigado a Cinemateca no mesmo edifício em que mantinha a coleção que compunha o núcleo inicial do Museu de Arte Moderna. O incêndio só não atingiu o acervo porque irrompeu no último andar do prédio. A convivência física com a Cinemateca tornou-se altamente arriscada.

Ciccillo, que havia coordenado os trabalhos de implantação do parque Ibirapuera, construíra um galpão no portão 9 para as reuniões da sua equipe. Inaugurado o parque em 1954, ele deveria ter sido demolido. Com as bênçãos do poderoso padrinho, a Cinemateca instalou-se nesse endereço bucólico em meio a um bosque de eucaliptos.

Separada do MAM, a Cinemateca se institucionalizou como fundação privada, cujo conselho curador era composto por um grupo eclético politicamente, mas de grande envergadura cultural. Dele participavam, entre outros, Cláudio Abramo, Décio de Almeida Prado, Francisco Matarazzo Sobrinho (Ciccillo), Júlio de Mesquita Filho, Humberto Mauro, Mário Pedrosa, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Vinicius de Moraes. Na diretoria estavam Paulo Emílio Sales Gomes, Antonio Candido e Almeida Sales.

Paulo Emílio passa então a procurar apoio no poder público. No plano municipal, encontra amparo para a Cinemateca na política criada para compensar a falência da Vera Cruz. O imposto municipal recolhido nas bilheterias de cinema da capital era revertido ao fomento dos filmes brasileiros e às atividades culturais.

No plano estadual, apesar das demonstrações de apreço pela causa, nada foi conseguido. Com a USP firmou-se um convênio pelo qual a Cinemateca ganharia um endereço na Cidade Universitária, que incluiria bunkers isolados para o depósito seguro dos filmes inflamáveis. Eles nunca foram construídos. No plano federal, as promessas do governo Juscelino não se confirmaram e a saída foi buscar o apoio legislativo.

Naquela época, período anterior ao golpe militar, o Congresso podia tomar a iniciativa de criar despesas. Um projeto de lei que estabelecia uma subvenção federal à Cinemateca chegou a entrar na pauta de votação da Câmara, mas uma manobra da mesa retirou-o da ordem, inviabilizando o esforço político de quatro anos.

Sem apoio do poder público, a equipe da Cinemateca, composta por Paulo Emílio e seus assistentes — Jean-Claude Bernardet, Caio Scheiby, Gustavo Dahl, Maurice Capovilla, Lucila Ribeiro —, sobrevivia de artigos, cursos, palestras, mostras, sem perspectiva de futuro. O grupo acaba se dispersando; Paulo Emílio e Jean-Claude seguem a Brasília a convite de Darcy Ribeiro para criar o curso de cinema da UnB.

Em 1962, Dante Ancona Lopez, em parceria com o maior exibidor local, a Companhia Serrador, fundava a SAC (Sociedade Amigos da Cinemateca) e passava a programar o Cine Coral com filmes de Fellini, Antonioni e os cineastas modernos da França ou do Japão.

Criava-se, assim, o conceito de cinema de arte na cidade. Em seguida, a experiência se estendeu aos cinemas Scala, Picolino e Belas Artes, onde era possível ver filmes de Arthur Penn, Sidney Lumet, Bernardo Bertolucci, Miklós Jancsó. Dessa iniciativa ainda restam remanescentes: Espaço Itaú Augusta, CineSala, Reserva Cultural e o próprio Belas Artes.

Em 1969, a Cinemateca sofreu o seu segundo incêndio, daquela vez num dos precários depósitos de filmes inflamáveis do Ibirapuera. A altura das chamas podia ser observada nas marcas carbonizadas dos troncos dos imensos eucaliptos do entorno.

Em seguida, a Cinemateca submergiu e só foi ressurgir em 1975, quando Paulo Emílio decidiu retomá-la, aproveitando os bons ventos que haviam feito de José Mindlin e Sábato Magaldi secretários de Cultura do Estado de São Paulo e da capital paulista, respectivamente. Ambos apoiaram decisivamente esse movimento, e o fundador da Cinemateca, em seus últimos anos de vida, liderou a inflexão da instituição para o campo prioritário da preservação audiovisual.
Com recursos das secretarias de Cultura, pôde a Cinemateca instalar um Laboratório de Restauro de Filmes, incontornável após os laboratórios comerciais abandonarem o tratamento do filme em branco e preto. Ao iniciar essa nova fase, a Cinemateca passou a atender demandas de todo o país.

Paulo Emílio morreu em 1977. Não viu a sua Cinemateca reconhecida como esperava. A partir de 1979, a Embrafilme passou a contratar restauro de filmes e a patrocinar projetos de envergadura como a Filmografia Brasileira. O problema principal, no entanto, continuava irresolvido. Não havia garantia dos salários dos técnicos da Cinemateca, que de tempos em tempos eram obrigados a procurar emprego.

Em 1982, o terceiro incêndio irrompe na mesma instalação precária do Ibirapuera. Novamente perdem-se registros únicos da nossa história, e o fantasma da extinção pelo fogo volta a assombrar. Nesse momento ficou claro para os dirigentes da Secretaria da Cultura do MEC e da Embrafilme que uma solução precisava ser rapidamente encontrada em vista da extrema fragilidade institucional da Cinemateca.

Em 1984, surgiu uma oportunidade única: diante da crise aguda de instituições de peso no campo do patrimônio cultural, a Fundação Nacional pró-Memória do MEC foi autorizada a absorver esses museus com seu acervo, instalações e pessoal. A Cinemateca, o Museu Lasar Segall e o Museu da Chácara do Céu (Rio de Janeiro), entre outros, beneficiaram-se dessa janela. E a Cinemateca finalmente conquistou uma modesta estabilidade, essencial nos trabalhos de preservação de longo prazo.

A ata de incorporação da Cinemateca ao governo estipulava salvaguardas, válidas até hoje: sua sede não poderia ser transferida de São Paulo, a instituição gozaria de autonomia política, assegurada pelo seu Conselho Consultivo, composto de representantes das três instâncias do poder público e de cineastas, pesquisadores, professores, jornalistas, artistas, sem maioria dos agentes governamentais. Uma real parceria entre governo e sociedade em benefício de uma instituição pública.

No acordo então estabelecido, à União cabia prover o custeio (pessoal e manutenção), e ao setor privado e outras instâncias de governo, a busca por investimentos.

Esse entendimento possibilitou, em 1989, a criação da Sala Cinemateca, com patrocínio do Banco Nacional, recebido por intermédio da SAC. Nesse cinema da rua Fradique Coutinho, foram exibidos ciclos como “Este Mundo É um Pandeiro”, dedicado às chanchadas carnavalescas, e mostras de grandes diretores como John Ford, Fritz Lang, Ozu, Mizoguchi, Max Ophuls e Tarkovski.

Com a eleição de Collor, os órgãos federais do cinema, como Embrafilme e Fundação do Cinema Brasileiro, foram extintos. A Cinemateca só se salvou por estar vinculada ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

A parceria com a SAC, reativada em 1989, foi crucial para a consolidação da instituição. Atraindo personalidades destacadas como Luiz Carlos Bresser Pereira, Cosette Alves e Roberto Teixeira da Costa, a SAC e a Cinemateca acabaram por adentrar no mundo da mídia, do poder político e econômico, franqueando-lhe apoios e investimentos da Petrobras e do BNDES necessários para levar avante o restauro das instalações do Matadouro Municipal de São Paulo, cedidas pelo então prefeito de São Paulo Jânio Quadros para sede da Cinemateca.

A passagem do cinéfilo Bresser Pereira como presidente da SAC, entre 1987 e 1992, e a vivência da parceria com a Cinemateca deram-lhe a experiência que serviu de inspiração para a criação das OSs (organizações sociais), quando se tornou ministro da Reforma do Estado, no governo FHC.

No governo Lula, a Cinemateca foi transferida do Patrimônio Histórico para a Secretaria do Audiovisual, e usada como instrumento de política cultural do governo. Para isso recebeu um considerável aporte (R$ 105 milhões em 5 anos) por meio da SAC.

Com sede impressionante, proeminência política e recursos, a instituição ganhou um destaque indesejado ao contrariar sua vocação natural de órgão de preservação.

Uma disputa política deflagrou suspeita de irregularidades, e a ministra da Cultura do governo Dilma, Marta Suplicy, decidiu em 2013 intervir na Cinemateca, demitindo o diretor Carlos Magalhães sem sequer ouvi-lo, não renovando o mandato dos conselheiros, reduzindo drasticamente o orçamento e o corpo de funcionários, que principiou a definhar.

A apuração das “irregularidades” não constatou desvio ou malversação de recursos públicos, apenas ausência de protocolos administrativos. Nada que justificasse a truculência da intervenção. A Cinemateca teve quebrada sua espinha, arranhada sua reputação. Já a SAC foi paralisada.

Em consequência da redução de colaboradores, sobreveio em 2016 o quarto incêndio, que atingiu uma câmara de armazenamento de filmes inflamáveis na sede da Vila Clementino. Perderam-se mil rolos de filmes antigos, cuja totalidade não estava copiada. A necessária reforma dos depósitos de nitrato após o incêndio já não contou com verba do ministério; foi feita com recursos de particulares. A indiferença de Brasília era ostensiva.

Durante 30 anos, de 1984, data do ingresso dos técnicos no quadro do governo, a 2013, não houve concurso público para reposição do corpo funcional da Cinemateca. Desse modo, a força de trabalho teve de ser arregimentada de modo precário, via terceirização. Ela aconteceu com o chamamento de contratação de uma Organização Social. A escolhida foi a Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto), herdeira da TVE do Rio de Janeiro.

Como a Acerp é uma OS do Ministério da Educação, o contrato com a Cultura não pôde ser celebrado diretamente e pegou carona no contrato da TV Escola, cujo prazo de validade era dezembro de 2019. Por esse motivo, a Cinemateca ficou sem cobertura a partir de janeiro de 2020.

A Acerp manteve a Cinemateca com recursos próprios, na expectativa de forçar o governo a reconhecer uma situação de fato, mas tal estratégia não vingou.

Instado pela Câmara dos Vereadores, pela Associação dos Moradores de Vila Mariana e a Associação Paulista de Cineastas, o Ministério Público acionou a União, solicitando da Justiça Federal tutela de urgência — em outras palavras, reconhecimento da excepcionalidade da situação que exige medidas para evitar uma ameaça ao patrimônio público.

O Ministério Público teve o cuidado de pedir também o restabelecimento das salvaguardas rompidas unilateralmente em 2013. O esforço, contudo, foi em vão; a Justiça Federal manteve-se indiferente ao apelo e declarou-se satisfeita com as medidas tomadas pela Secretaria Especial da Cultura do governo federal.

O quinto incêndio aconteceu na semana passada. Ironicamente, não recaiu sobre o depósito de nitrato como nas vezes anteriores, e sim no depósito de acervo em trânsito, que não continha nenhum material particularmente perigoso, apenas papéis e filmes de segurança, com risco equivalente ao de uma biblioteca.

Analisando as imagens do sinistro e o relato dos bombeiros, fica-se com a impressão de que, se os técnicos da Cinemateca lá estivessem, teriam minimizado os danos, como fizeram no incêndio de 2016, quando orientaram os bombeiros quanto à melhor estratégia de confinar as chamas e impedir que a água vertida pelas mangueiras destruísse o que o fogo não atingiu.

Enquanto os técnicos não reassumirem suas funções, a ameaça permanece na sede principal, onde estão guardados os tesouros da Cinemateca e o valioso patrimônio audiovisual brasileiro.

Tenho sido assediado para dar sucessivos esclarecimentos e entrevistas em função do incêndio. Verifico no semblante do interlocutor uma surpresa, que logo deriva em incredulidade e incompreensão. Acabamos por, juntos, constatar que o caso é bem embrulhado.

O entrevistado, sob o peso da memória de três incêndios, começa a duvidar do próprio relato, que soa inverossímil. Como o poeta sem téssera, ele “apela em vão para Kafka”.

Carlos Augusto Calil
Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, foi diretor da Cinemateca Brasileira (1987-1992). Desde março é presidente da SAC (Sociedade Amigos da Cinemateca)

Ilustríssima / FSP 7.08.2021

Entrevista com os Trabalhadores da Cinemateca Brasileira (1 de setembro de 2020)

Limite: Qual tem sido a reação da comunidade cinematográfica internacional à crise da Cinemateca Brasileira? E o que podemos fazer para nos mantermos em dia sobre a situação?

Trabalhadores da Cinemateca Brasileira: Primeiramente, um agradecimento a todos que contribuíram com a campanha de arrecadação online e que vêm repercutindo a causa da Cinemateca Brasileira. Esse retorno da sociedade motivou, e vem motivando, o coletivo de trabalhadores da Cinemateca a relatar essa situação nas redes sociais. Mesmo com um corpo técnico com opiniões e vínculos diversos – além dos 41 celetistas que formalmente estiveram em greve, existem também os 11 prestadores de serviços – o retorno que tivemos foi importante, pois elevou a questão não só dos salários atrasados, mas do valor dos trabalhos técnicos realizados na instituição. Trabalhos que, aliás, advêm de investimentos públicos, e por isso compõem um dos patrimônios da própria Cinemateca Brasileira a serem preservados em qualquer solução de continuidade. Neste momento, a cobrança tem que ser feita junto à Secretaria Especial da Cultura e à Secretaria Nacional do Audiovisual para que eles encaminhem uma solução para a Cinemateca Brasileira. E que esta solução não seja meramente formal: que considere a atual equipe técnica e profissionais terceirizados e a sua ampliação.

Na ótica do governo, eles teriam feito a saída emergencial ao contratarem os serviços de segurança e brigadista. No entanto, não existe equipe técnica na instituição e boa parte dos profissionais terceirizados que trabalhavam lá também não foram chamados para esses novos contratos. A situação é bem preocupante porque sabemos dos problemas de queda de energia na região,1 e da necessidade de monitoramento dos acervos. Sem equipe técnica suficiente para realizar essas funções, o acervo encontra-se vulnerável. Afora a ausência de uma transição da atual equipe para uma próxima.

L: A Cinemateca Brasileira já passou por várias crises no passado. Vocês diriam que a crise atual é a mais significativa da história da instituição?

TCB: Sim. Pela primeira vez, em sua septuagenária história,não há equipe técnica trabalhando no local, não há qualquer garantia de continuidade. O que fica cada vez mais patente é o descaso do poder público e a falta de atitude para solucionar os problemas enfrentados pela instituição.

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