Mês: outubro 2019

‘Nascimento de uma Nova Vanguarda: A Cámera-Stylo’ – por Alexandre Astruc (texto de 1948)

NASCIMENTO DE UMA NOVA VANGUARDA: A CAMÉRA-STYLO
por Alexandre Astruc

O que me interessa no cinema é a abstração.

Orson Welles

É impossível deixar de ver que algo está acontecendo no cinema. Corremos o risco de nos tornarmos cegos diante da produção corrente, que mostra todos os anos o mesmo rosto imóvel, onde o insólito não tem vez.

Ora, o cinema hoje tem um novo rosto. Como se vê isso? Basta reparar. É preciso ser crítico para não ver esta transformação espantosa do rosto, que acontece sob nossos olhos. Quais são as obras atravessadas por essa nova beleza? Precisamente aquelas que a crítica ignora. Não é por acaso que de A Regra do Jogo de Renoir aos filmes de Orson Welles, passando por As Damas do Bois de Boulogne, tudo aquilo que traceja as linhas de um novo futuro escapa a uma crítica da qual, de qualquer forma, não se poderia esperar outra coisa.

Mas é significativo que as obras que escapam às bênçãos da crítica sejam aquelas sobre as quais nós somos alguns a estar de acordo. Nós lhes atribuímos, se quiserem, um caráter anunciador. É por isso que eu falo de vanguarda. Há vanguarda toda vez que acontece algo de novo…

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‘O Que é a Mise en Scène?’ – por Alexandre Astruc (1959)

O QUE É A MISE EN SCÈNE?
por Alexandre Astruc

Não é necessário ter feito muitos filmes para dar-se conta de que a mise en scène não existe, que os atores se dirigem muito bem sozinhos, que qualquer operador de câmera sabe onde colocá-la para obter um enquadramento conveniente, que o acordo entre os planos faz-se sozinho, etc. Mizoguchi e Ophüls devem ter compreendido isso muito rápido para passar logo ao que lhes interessava. Observar as pessoas agirem? Não exatamente. Apresentá-las, observá-las tanto ao agir como ao mesmo tempo serem levadas à ação.

A diferença do cinema para não importa o quê, incluso o romance, é primeiramente a impossibilidade da mentira; em segundo, a absoluta certeza, partilhada por espectador e autor, que na tela tudo se arranjará com o tempo. Se o metteur en scène, o realizador, intervém em qualquer coisa na realização de um filme, ele intervém nisto, antes de tudo. Ele se aventura entre estas duas evidências: a da imagem por onde ele espreita e a da duração pela qual ele a conclui.

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Trajetória de Fritz Lang, por Michel Mourlet (texto de 1987)

O que é um filme, senão um implacável e necessário escoamento de imagens no qual a consciência fascinada se afoga e se esquece, para se reencontrar no mais íntimo do ser? “O que é um filme?”, esta interrogação suscitada pela obra de grandes cineastas, Fritz Lang é um dos raros a tê-la sondado a fundo e resolvido. Sua obra inteira se apresenta como uma aproximação lenta e tenaz, uma vez estabelecidos os fins, da perfeição dos meios suscetíveis de conduzir até estes. E quais são estes fins? Trata-se, como em toda obra de arte, de impor uma certa forma do mundo com o máximo de intensidade, de forma a paralisar o reflexo crítico pela evidência da revelação. Sendo o cinema um olhar sobre as coisas e sobretudo sobre os seres, convirá imprimir às aparências um movimento tal que, presa na engrenagem, a consciência espectatorial torne-se o local passivo de uma liturgia na qual cada gesto remeta à totalidade do símbolo. A obra será então perfeitamente fechada sobre si, um círculo que aprisiona um universo que basta a si mesmo, pois é de uma margem de interferências entre a obra e a realidade cotidiana que nasceria um eventual recuo. (Seja pela recusa do banal, como inútil, ou do incerto, como prejudicial, ou do falso, como ineficaz.) Se o banal e o falso acordam o espectador do sono hipnótico e o devolvem a seu presente real, que campo resta a cultivar? A única resposta é: o possível. Em outras palavras, o que é percebido ao mesmo tempo como verdadeiro e como extremo, como a realização das virtualidades, saciando a sede original do homem. E, se o contingente rompe a unidade da obra e dispersa seu poder, a organização do possível necessário — de forma que a obra preencha inelutavelmente a postura de espera do espectador — nos conduz ao coração do problema de Fritz Lang. A eliminação do acaso e a dominação constante das formas, por uma arquitetura na qual todas as partes se comuniquem e se provoquem, resultarão numa fascinação, ou na impossibilidade do espectador se desconectar da ordem do espetáculo.

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