Mês: setembro 2019

‘O Gênio de Howard Hawks’, por Jacques Rivette. Cahiers du Cinéma nº 23 (maio de 1953)

O gênio de Howard Hawks. Jacques Rivette, Cahiers du Cinéma 23 (maio de 1953)

A evidência na tela é a prova do gênio de Hawks: basta assistir a O Inventor da Mocidade para saber que é um filme brilhante. Alguns recusam-se a admiti-lo, no entanto; eles recusam a persuasão pelas evidências. Não pode haver outro motivo para que não o reconheçam.A obra de Hawks é igualmente dividida entre comédias e dramas – uma ambivalência notável. Ainda mais notável é a fusão desses elementos para que cada um, ao invés de danificar ao outro, sublinhe a reciprocidade: um afia o outro. A comédia jamais está ausente por muito tempo nos enredos mais dramáticos, e ela, longe de comprometer a sensação de tragédia, remove o fatalismo complacente para manter os eventos num equilíbrio perigoso, uma incerteza estimulante que colabora para a força do drama. O secretário de Scarface fala um inglês comicamente embolado, mas isso não o impede de ser baleado; nosso riso no decorrer de À Beira do Abismo é inseparável do receio do perigo; o clímax de Rio Vermelho, quando não estamos mais certos das nossos emoções, avaliando qual lado tomar e se devemos nos deleitar ou assustar, coloca nossos nervos em pânico e nos instala num estado tão atordoante e vertiginoso quanto o do equilibrista na corda-bamba cujo pé vacila sem escorregar, um sentimento tão inquietante quanto o término de um pesadelo.Enquanto a comédia confere à tragédia hawksiana sua efetividade, ela não consegue dissipar (não a tragédia; não vamos estragar nossos melhores argumentos ao ir longe demais) a forte impressão de uma existência em que nenhuma ação pode desatar-se da teia da responsabilidade. Poderíamos ser expostos a uma visão de vida mais amarga que essa? Tenho que confessar ser um tanto incapaz de aderir às risadas de uma sala lotada enquanto sou arrebitado pelas viravoltas da fábula (O Inventor da Mocidade) que retrata – alegre, lógica e impiedosamente – os decisivos estágios de degradação de uma inteligência superior.Não é um acaso que grupos semelhantes de intelectuais apareçam tanto em Bola de Fogo e O Monstro do Ártico. Hawks, porém, preocupa-se menos com a submissão do mundo à visão fria e enfadonha da mente científica que com o retrato das desgraças cômicas da inteligência. Hawks não está preocupado com a sátira ou a psicologia; para ele, as sociedades não significam mais que sentimentos; ao contrário de Capra ou McCarey, ele está exclusivamente interessado na aventura do intelecto. Se ele opõe o velho ao novo – o conhecimento humano acumulado do passado às formas degradadas da vida moderna (Bola de Fogo, A Canção Prometida), ou o homem à besta (Levada da Breca), ele se atém à mesma história – a intrusão do inumano, ou da manifestação mais crua de humanidade, na sociedade altamente civilizada. Em O Monstro do Ártico, a máscara finalmente cai: no confinado espaço do universo, alguns homens da ciência estão engalfinhados com uma criatura pior que o inumano, uma criatura do outro mundo; seus esforços pretendem enquadrá-la nos parâmetros lógicos do conhecimento humano.Mas, em O Inventor da Mocidade, o inimigo adentrou o próprio homem: o sutil veneno da fonte da juventude, a tentação do infantilismo. Esta sabemos há muito tempo ser uma das menos sutis astúcias do Mal – a um tempo na forma de cão de caça(hound), outrora na forma do macaco – quando enfrenta o homem de rara inteligência. E é a mais infeliz das ilusões que Hawks ataca com crueldade: a noção de que a adolescência e a infância são estados bárbaros dos quais somos resgatados pela educação. A criança é dificilmente distinguível do selvagem que a imita em suas brincadeiras: até o idoso mais distinto, depois de ingerir o precioso líquido, imita um chimpanzé com prazer. Pode-se encontrar nisso uma concepção clássica do homem, uma criatura cujo único trajeto para a grandeza reside na experiência e na maturidade; ao fim de seu percurso, sua avançada idade irá julgá-lo.Ainda pior que o infantilismo, degradação, ou decadência, no entanto, é a fascinação que essas tendências exercem na mesma inteligência que as percebe como más. O filme não é meramente uma história sobre essa fascinação; ele se coloca ao espectador como uma demonstração do poder da fascinação. Igualmente, qualquer um que critique essa tendência deve primeiramente submeter-se a ela.

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A condição crítica – por Maurice Blanchot (1950)

A condição crítica (1950)

por Maurice Blanchot

É preciso talvez se perguntar novamente: por que a crítica, por que esse exercício? Uma paciente de Pierre Janet dizia: “Um livro sobre o qual é preciso refletir torna-se sujo.” Essa observação nos revela, ao que parece, uma das razões de ser da crítica. Mesmo quando esta pouco reflete, ela comenta, ela interpreta; ela se orienta para o mundo. Seu papel é atrair as obras para fora de si mesmas, fora deste ponto de discrição fascinante em que elas se formam e gostariam de se fechar, abrigadas de toda curiosidade pública. Mas, no fim, é preciso que elas se tornem impuras; não vemos por que elas escapariam a essa prova. Quando Rilke escreve a um jovem poeta “As obras são de uma solidão infinita; para agarrar uma obra de arte, nada pior do que as palavras da crítica”, ele exprime apaixonadamente uma reserva que gostaríamos de manter junto com ele, mas que ele próprio não pode senão quebrá-la, pois por que essa solidão de que ele fala tornou-se ela própria obra? Por que essa intimidade violenta foi repousar na calma existência de um livro? No final deste movimento, está o crítico e sua intervenção suja.

É verdade que a crítica, tal como Rilke a rechaça e tal como ela se exprime todo e a cada dia, potência rápida, passageira nula e soberana, destinada a introduzir as obras imprecavidamente no turbilhão e no curso do mundo, é um fenômeno moderno. O século XVIII, que libera a arte do gosto do eterno, mostra que esse trabalho não tem nada a ver com aquele dos autores da arte poética e dos comentadores de Aristóteles e Quintiliano. Sua essência está ligada ao instante e à ação. Sainte-Beuve, nas páginas que consagra a Bayle (1), chama-a (para louvá-la) de “cotidiana”. Ela combate no dia-a-dia. Ela não tem nada de digna nem de preocupada. Ele diz ainda: “O gênio crítico, em seu ideal completo (e Bayle realiza esse ideal mais que qualquer escritor), está nas antípodas do gênio criador e poético, do gênio filosófico com seu sistema; ele leva tudo em consideração, valoriza tudo… Todo espírito que possui em si uma parte de arte ou de sistema só admite de bom grado o que é análogo a seu ponto-de-vista, à sua predileção. O gênio crítico não se mantém em seu centro ou a pouca distância; não escava em seu quintal, nem em sua cidadela, nem sua academia; ele não teme rebaixar-se; vai a toda parte, pelas ruas, informando-se, acercando-se; a curiosidade o seduz, e ele não se poupa dos regalos que se apresentam.”

Talvez não leiamos essas linhas satisfeitas sem uma certa repugnância. Essa alegria da curiosidade sem paixão, esse prazer da busca agradável e sem objetivo (“a curiosidade o seduz”) e mesmo essa vocação da infidelidade, esse gosto pelas inversões que permite a Bayle “fazer compras em toda sorte de autores”, expressão admirável, diz Sainte-Beuve: nós podemos apreciar semelhantes traços, se muito, à época em que vivia Bayle, quando eles significavam a tranquilidade da tolerância, isto é, uma certa forma de insubmissão. Mas o inquietante é que tal tolerância, esta verdadeira felicidade do espírito, nada mais é que uma indiferença de fundo, mesmo que Sainte-Beuve veja em Bayle um espírito crítico mais verdadeiro que Montaigne, pois lhe é inferior na arte e no estilo, mais justo que Voltaire, por não possuir a paixão (não possui sequer a paixão amorosa, e essa falta de desejo amoroso “serviu maravilhosamente bem a sua faculdade crítica”), mesmo que ele nos convide a reconhecer nessa neutralidade perspicaz (ao ponto de Bayle pôr no mesmo plano Pradon e Racine) uma das condições essenciais do gênio crítico, “o qual, quando é pleno, consiste em correr ao primeiro sinal para o terreno de um qualquer, em encontrar-se à vontade, em bancar o mestre e conhecer todas as coisas.” Na realidade, como não dar razão a Rilke?

Averiguemos, no entanto. É preciso reter que a potência crítica pertence ao dia naquilo que esse tem de fugidio, de instantâneo; ela tem a versatilidade do dia que passa, mas isso significa também que ela é movimento e devir, e seu papel é dissolver a solenidade e o caráter abrupto e fechado das obras, entregando-as à reflexão da vida, que, como sabemos, felizmente, não respeita nada. Além disso, compreendemos que o crítico não deve possuir arte própria e talento pessoal: ele não deve ser, ele mesmo, seu centro; ele é um olhar, certo, mas um olhar anônimo, impessoal, vagabundo. Nesse sentido, podemos dizer que a condição do crítico é uma das mais difíceis e exige uma ascese quase insustentável. Um ser anônimo, irresponsável, uma presença sem amanhã, alguém que não deve jamais dizer “eu”, mas no máximo “nós”, o eco potente de uma palavra expressa por ninguém. Não dizemos isso derrisoriamente. Um dos erros das filosofias contemporâneas é ter depreciado futilmente o valor do “nós” (2).

É preciso notar que a tarefa da crítica se dá em momentos antagonistas da “obra de arte”. Ela está fora, e a obra é uma intimidade fechada, ciumenta, que sempre nega, mais ou menos, o de fora. A crítica faz então seu papel quando contraria o movimento da obra. Mas, para contrariá-la, ela deve também se aproximar da obra, compreendê-la, traí-la — não por não compreendê-la, mas na medida em que é um esforço muito grande de compreensão. A interpretação mais fiel é a mais infiel, pois ela abre a obra inteiramente à verdade do dia comum, enquanto para a própria obra trata-se de manter-se fora do que é verdadeiro, de escapar à verdade. Por isso o crítico que se dedica excessivamente à intimidade da arte passa, no fim, à obscuridade da arte e nega a si mesmo. Ele deixa de ser a má vontade, a vontade caprichosa do momento presente que ilumina num instante o livro (ou o negligencia) e tira dele o que quer; e se torna a boa vontade assídua que ama a cultura, que acima de tudo ama os livros e os respeita e os salva, esta passividade sem limites da compreensão, esta espécie de generosidade branda, esta vida inteira fechada nos limites dos livros e inteiramente consagrada a estudá-los, louvá-los, enriquecê-los, a fazê-los durar e finalmente a elevá-los ao céu sublime do atemporal: encantamento bizarro que representa para nós, num grau sem dúvida admirável, um crítico como Charles du Bos.

Isso não é tudo. É claro que a contrariedade exige anda mais e que ela não atinge seu verdadeiro ponto senão no momento em que crítico e obra se confundem, quando isto que chamamos de consciência criadora aceita perder-se no olhar superficial do dia e afirma-se cúmplice da preocupação que a ignora. Em que resulta isso? Certamente num tormento bastante grande; certamente, muitas vezes numa confusão infeliz e num consentimento provavelmente estéril àquilo que não se pode, contudo, aceitar. Mas isso talvez não importe, pois o importante é que o criador se declare solidário, não à vã eternidade para a qual a criação o atrai, mas ao presente perecível que lhe assegura a criação de uma crítica sem amanhã.

***

Publicado originalmente em L’Observateur, 18 de maio de 1950. Republicado na revista Traficnº 2, primavera de 1992.

Traduzido do francês por Calac Nogueira.

Notas:

(1) Sainte-Beuve, Oeuvres, Premiers lundis, Porttraits littéraires, vol. 1 da Bibliothèque de la Pléiade, editora Gallimard. [N.O.]

(2) No original, pronome impessoal “on”. Como na frase anterior Blanchot opunha o “je” ao “nous”, escolheu-se, na ausência de tradução melhor, manter o “nós”. [N.T. ]

Fonte: https://funcritica.wordpress.com/2016/11/04/a-condicao-critica-blanchot/

Corpos no Espaço: Cinema como Conhecimento Carnal por Annette Michelson (Texto de 1969)

I

Toda maestria provoca um calafrio.

— Mallarmé

O temor indefinido
imbuído de ciência,
que é a melhor
clareza da metafísica.

— Borges

No inverno de 1905 a primeira sala de cinema continuamente operada foi inaugurada em Los Angeles. Há um sentido óbvio no qual a história do cinema é circunscrita pelo programa inicial dessa sala. A Viagem à Lua de Georges Méliès, e 2001: Uma Odisséia no Espaço de Stanley Kubrick. Há outro sentido no qual essa evolução hipostasia a dinâmica acelerada da História. Caminhando os três blocos entre a sala de exibição do Museu de Arte Moderna e o Capitólio da Loew’s, pensando nessa evolução, nos vemos traçando um vetor, explorando, por implicação, um movimento multidimensional da consciência humana de nosso século.

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